Martinho, como a mulher para Simone de Beauvoir, não é da Vila: tornou-se da Vila. Ainda mais por isso, por ter sido uma escolha e uma escolha consciente e mútua, a relação entre Martinho e a Vila é inquestionável: a Vila em ascensão queria aquele extraordinário compositor da vizinha Boca do Mato; Martinho, depois de ganhar uns dez sambas grandiosos na pequena Boca do Mato também desejou seus sambas em azul-e-branco no desfile principal. É uma relação, Martinho e Vila, que só cabe a eles, de certa forma uma criou o outro, este a pôs no nome e no sangue. E, de novo como a mulher de Simone de Beauvoir, acabou que até parece que Martinho nasceu na Vila (como a mulher quase sempre parece que nasce mulher).
O crítico, quando olha uma coisa dessas — a Vila homenagear Martinho com um enredo — só tem o direito de se calar e dar 10, nota 10 ao menos ao quesito tema. Porque para isso as escolas de samba foram feitas: contar a história de seu povo, o povo negro do Rio de Janeiro que as inventou, chorar suas mazelas, louvar suas conquistas, enaltecer seus heróis. E, embora o enredo chamado Canta, canta minha gente! A Vila é de Martinho! pelo título pareça contemplar apenas a primeira e a última missões das escolas de samba, poucas mazelas e muitas conquistas recheiam seu desenvolvimento.
Na mesma lógica das escolhas, a Vila desejou se tornar a escola de Noel. Muito embora Noel fosse do asfalto, do outro lado do bairro, da Rua Teodoro da Silva, e a Vila tenha nascido na subida do Morro dos Macacos, e nove anos depois da sua morte. Mas ser de Noel era o desejo fundamental do fundador da Unidos de Vila Isabel, Seu China, um originário do Morro do Salgueiro que igualmente desejou ser da Vila e, mais ainda, sonhou que o bairro de Noel tivesse uma escola de samba, não fosse Noel, em seu tempo, parceiro de compositores de várias escolas, um Cartola, da Estação Primeira de Mangueira, Ismael Silva da Deixa Falar do Estácio, Antenor Gargalhada da Azul e Branco do Salgueiro.
Pois Noel e Martinho, ambos desejados — um como “patrono”, outro como seu poeta e símbolo da escola — encontram-se logo no início do enredo, cuja sinopse foi escrita por Victor Marques e Clark Mangabeira, que desenvolveram o tema com o carnavalesco Edson Pereira.

“Duas Barras marcada no coração do menino que veio à luz no Carnaval, um ano depois – quem diria? – da partida de Noel”.
O “quem diria” indica uma intenção do enredo, da ordem da mitologia: apresentar Martinho como uma espécie de reencarnação de Noel. Ou melhor: da encarnação do sonho de ser uma escola de Noel, talvez, como na tradição cristã, o Cristo como uma encarnação do Pai (ou seja, de uma ideia).
Para isso, como toda boa mitologia, o enredo não se preocupa com a precisão histórica. (Afinal, o próprio Jesus teria nascido, por cálculos factuais, talvez em agosto, mas por motivos puramente mitológicos os cristãos primitivos escolheram uma velha data comemorativa romana, o 25 de dezembro). Nem Martinho se preocupou, pois na fala inicial de seu primeiro disco, de 1969, o próprio diz que nasceu no carnaval de 1938, embora tenha nascido em 12 de fevereiro num ano cujo carnaval caiu no 27.
Precisão histórica é bobagem de biógrafo e eu, no meu livro Martinho da Vila – Discobiografia, tento demonstrar que, qual uma conjunção astrológica, o carnaval de 1938 teria uma influência eterna na vida do nascido naquele mês, pois foi um ano de grandes sambas (Alegria, Camisa listada, Tenha pena de mim), de um desfile histórico e político de uma escola vestida de azul e branco (Democracia no samba, enredo de Paulo da Portela para a sua escola de Oswaldo Cruz) e principalmente de Vila Isabel (e depois a cidade e todo o país) inteira cantando uma marcha de Noel, As pastorinhas, seu último sucesso no carnaval, já recém póstumo.

A meu ver acertadamente, o enredo não desce a minúcias desse tipo, que encantam biógrafos e enchem páginas. Em relação ao carnaval de 1938, o texto é conciso.
“Mal sabia o pequeno Zé que o Axé o preparava para encantar o povo. É a vida que começava a ser tecida pelos caminhos que Zambi quis”.
O “pequeno Zé”, Martinho José Ferreira, nascido em Duas Barras, na Serra Fluminense, no mês em que não muito distante dali, no então Distrito Federal o carnaval foi histórico, por causa desse “Axé” estava destinado a ser a encarnação da ideia de uma escola de samba da Vila.
Essa ideia de encarnação parece tão forte, que embora o enredo não tenha (e nem precise ter) uma ideia central — é tão somente a condensação poética da vida de Martinho e sua relação com a Vila — há uma ideia básica que, talvez inconscientemente, remeta mesmo ao nascimento de uma espécie de salvador. Tanto que, na prática, o que a Vila propõe em seu enredo é a entronização de Martinho como seu rei. O desfile é, literal e metaforicamente, uma coroação:
Batuques invadem o Morro dos Macacos e passeiam pela Vila num convite animado à coroação. Por becos e vielas, seus camaradas descem escadas e ladeiras acompanhados pelo riso inocente das crianças admiradas que entoam melodias eternizadas por ele. Ele, cujo caminho até a coroação foi longo, nasceu na roça onde sentia o vento no rosto e a liberdade nos pés. Corria solto o moleque pelo chão batido, brincando sob a benção do carinho de Mãe Tereza e do amor devoto de Vó Procópia a proteger o garoto contra mau-olhado e assombração.
“Mãe Tereza” e “Vó Procópia” são apresentadas como a Virgem Maria e Sant’Ana no quadro de Leonardo estudado por Freud — o pai querido e atormentado que morreu cedo, inexiste no enredo. E o velho Martinho hoje saudado em sua coroação no Morro dos Macacos e nas ruas de Vila Isabel pelas crianças como exemplo, é reencontrado ele próprio criança protegido pela linhagem feminina da família na manjedoura de Duas Barras.
E sempre como se tratasse de — no mínimo! — uma vida de santo, o enredo começa a cronologicamente desenvolver a biografia do homenageado. Tal tom narrativo justifica-se plenamente: Martinho da Vila é seguramente o mais bem-sucedido sambista da história. Retirante do campo com a família e posteriormente favelado no Rio, antes de encarnar a figura do sambista, Martinho é o brasileiro típico do Século XX: o migrante pobre que deveria ter se tornado miserável nos morros e arrabaldes da cidade. Mas não: tornou-se pelo samba e não sem sofrimento e privações um herói da cultura brasileira, um embaixador do Brasil respeitado no mundo todo, sem abandonar sua origem e, pelo contrário, aprofundando-a até às raízes africanas.
Martinho, encarnando o tal brasileiro típico do Século XX, segundo o enredo ao chegar no Rio “carrega consigo a verdade do mundo estampada na pele”, a dificuldade de ser negro no Brasil:
“Com os Pretos Forros, na inteligência do dia a dia na Boca do Mato, Martinho fez samba no morro desde cedo, mesmo com a dor da dura vida que seus olhos testemunhavam. Percebeu que ser um só não bastaria para enfrentar a desigualdade. Cantarolava amores, amigos, a família e, múltiplo, virou Sargento Martinho, sem nunca vacilar na felicidade. Negro que segurou no peito as responsabilidades para gritar, partideiro, a revolta contra brancas maldades”.
Assim, heroico, Martinho é descrito no período mais duro de sua vida: o Morro dos Pretos Forros (não poderia ter caído em favela com nome mais apropriado), na Boca do Mato, a descoberta da música, a tentativa de ascensão social pelo Exército, a consciência da luta.
Nas Áfricas, o reencontro com sua própria história por completo
A biografia a ser traduzida na Avenida prossegue com a Menina moça (música com a qual estreou nacionalmente no Festival da TV Record de 1967) e o encontro com a Vila (tratada metaforicamente como a própria “menina-moça” desejada por Martinho):
“(…) Vila Isabel, amor à primeira vista. O encantamento foi mútuo. Ela lhe deu inspiração e, a ela, o Poeta declamou paixão.”
E o enredo passeia pela construção da obra de Martinho, seja na música comercial seja como autor da escola, da Casa de bamba no primeiro caso, o “Carnaval de ilusões”, “sob a benção de Noel”. E, talvez o momento-chave de todo a vida (ou enredo) do santo, o momento em que ele ganha o seu nome de santo:
“(..) amor-paixão pela Coroa, o Branco e o Azul tingindo a gente em noites de fascínio e magia, dedicação foliã entre confetes e serpentinas. Sentiu a quentura da folia e decidiu que o mundo daquele jeito feliz era seu lugar. Então, foi tudo montado para que o povo, ao seu som, sempre quisesse sambar! O Martinho? Mora lá na Vila… É o tal do Martinho da Vila, nosso Rei Negro da Folia”.
O enredo para em outro momento marcante da biografia de Martinho que tem impacto imenso obviamente na sua vida, mas em todo o samba, e na vida de todo negro brasileiro:
“Daí, reencontrou nas Áfricas sua história por completo. De Luanda, memórias, dom, talento, afeto. Ancestralidade é teu nome, Martinho, e a Vila te saúda! Suas andanças rumo ao Ventre Mãe reaparecem no sorriso aberto e Angola se faz presente. Voltando aos ancestrais, ecoam as vozes daqueles que possuem a força da cor. Nosso Poeta abre caminhos de lá pra cá e daqui pra lá. Intercambia, como elo, passado e futuro e Angola abraça o Embaixador Negro!”

Mas o tom do enredo, apesar desses momentos de magnitude, adequa-se à brincadeira, ao desfile de acontecimentos marcantes de Martinho e da Vila com potencial de empolgar o componente, amolecer o jurado, emocionar o público. São coisas como a referência aos grandes trabalhos de Martinho, ao enredo Kizomba – Festa da Raça, escrito por ele e que em 1988 deu o primeiro título da Vila, o sucesso com seu apelido de adolescente, Devagar, devagarinho, as polêmicas em favor do samba (como a que considerou preconceito de Sergio Porto e seu Samba do crioulo doido), os livros que escreveu. Ou, como resume bem o próprio enredo:
“Cabem, assim, mil Martinhos nessa história. Sem pressa, o Poeta Negro enredou suas memórias no chão sagrado da Vila, preparou o quintal pro pagode com os amigos, celebrou causos da fazenda, da favela, dos subúrbios e da folia, a mesa farta sempre em boa companhia — cantos de lavadeiras, corações de malandros, crenças e crendices, papos de cozinha”.
A descrição da vida de Martinho e sua entronização — proposta e objetivo do enredo — se dá por completo durante o desenho do desfile. Até à puxada de tapete final do enredo, que por muito tempo parece descrever um santo, qual nada, trata-se de um Griô de Gbala, é a coroação de um rei negro de África em Brasil. Na linha de Zambi, como já alertava o enredo em seu início:
“E agora é a vez de vocês correrem soltos, meninas e meninos da Vila, pois lá vem a coroação do Mestre Rei Martinho. Aprendam com o Griô de Gbala: é sobre a gente negra, nosso sangue, nosso carnaval, nossa ancestralidade, que hoje ele com a gente fala.”
Gente negra, seu sangue, seu carnaval, sua ancestralidade — e seu agora oficialmente rei, Martinho — é apenas um enredo da Vila Isabel para 2022. Mas poderia ser um manifesto do próprio samba.
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Desfile da Vila Isabel – 2022 – Resenha por Thales Valoura – CLIQUE AQUI
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Jornalista, escritor, roteirista e crítico de música. É o curador da nova sede do Museu da Imagem e do Som e autor de livros sobre música popular, entre eles "Martinho da Vila - Discobiografia"
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