O enredo da G.R.E.S. São Clemente em 2022, desenvolvido pelo carnavalesco Tiago Martins, dá continuidade a um processo de reaproximação da escola com sua identidade. “A vida é uma peça”, em homenagem ao humorista Paulo Gustavo, é mais um passo na reconexão com a própria irreverência, iniciado em 2019, quando Jorge Silveira, então responsável pela concepção dos desfiles da escola, reeditou o enredo “E o samba sambou”, de 1990, assim como o samba daquele ano.
Fundada em 1961 no bairro de Botafogo, a partir de um time de futebol e de um bloco de carnaval de rua, a São Clemente ampliou seu reconhecimento na opinião pública nos anos 1980. No momento em que o Brasil vivia a expectativa e o sonho de construção de uma sociedade democrática e livre, a escola apareceu como uma novidade, com enredos críticos, politizados e alegres.
A estética trazida pela São Clemente apontava para uma nova forma de construção de enredo, conectados com a crônica política e social, e que também seriam a tônica da passagem de Luiz Fernando Reis pela Caprichosos de Pilares (especialmente com “E por falar em saudade”, de 1985) e marcariam desfiles como “Eu quero” (1986), do Império Serrano, assinado por Renato Lage e Lilian Rabello.
Conectada com a ampliação da liberdade de uma lenta redemocratização pós-Anistia (1979), a marca da agremiação passou a ser o humor, usado para despertar a reflexão da audiência dos desfiles para as críticas propostas. O ineditismo da escola não estava no tema dos enredos, e sim na forma de apresentá-los. Em 1986, para falar sobre o direito à saúde, a São Clemente abordou o ditado popular “Pouca saúde, muita saúva”; em 1990, ao criticar a mercantilização do carnaval a partir do já citado “E o samba sambou”, botou o dedo em várias feridas e arrancou gargalhadas do público.
Essa marca permaneceu na escola ao longo dos anos 1990 e na primeira década deste século, só que de forma mais rarefeita, pontual, alternando enredos mais sisudos com alguns poucos marcados por esse espírito transgressor. Nos dois últimos desfiles, Jorge Silveira recuperou com muita força e engenho essas características. Depois da reedição de 2019, “O Conto do Vigário”, última passagem pela Sapucaí, em 2020, reestabeleceu laços com a crônica política a partir de uma abordagem inédita, com o espírito lúdico que já é uma marca das fantasias e alegorias de Silveira encaixando-se perfeitamente ao perfil da escola que o acolhia como artista.
Aposta na alegria e na força da vida
A homenagem a Paulo Gustavo procura dar continuidade a esse espelhamento. Um dos artistas de maior sucesso no Brasil nesta década, o ator foi uma das mais de 600 mil vítimas da Covid no país. O processo de adoecimento que ocasionou sua morte foi acompanhado por milhões de pessoas e não seria exagero dizer que sua partida gerou a um só tempo um trauma e uma maior consciência a respeito da epidemia.
A São Clemente resolveu mudar seu enredo logo após o falecimento do autor e protagonista de “Minha mãe é uma peça”, e a forma com que a escola fez isso foi lida como abrupta e até mesmo polêmica por parte do público e dos analistas do carnaval. Até então, o enredo, assinado por João Vitor Araújo, hoje na Acadêmicos de Cubango, chamava-se “Ubuntu”.
Para tal, e coerente com o movimento que vem fazendo desde o carnaval de 2019 e lembrando de tudo aquilo que construiu ao longo dos anos 1980, a São Clemente aposta numa narrativa que valorize a trajetória de Paulo Gustavo, lembrando do riso e da alegria como uma forma de resistir às agruras do cotidiano.

A visita ao barracão na Cidade do Samba revela um início de desfile em que Tiago Martins procura reverter qualquer expectativa a respeito de um cortejo choroso, conectado com a morte. O carnavalesco escolheu narrar a vida e a glória de um ator e autor que, embora vítima da pandemia, teve uma trajetória afirmando o riso como “ato de resistência”. Sem jamais aderir de forma explícita a uma atividade militante, Paulo Gustavo também fez da própria obra uma forma de luta pelas causas identitárias, especialmente pelas bandeiras LGBT.
Em vez de narrar a história do homenageado até a morte, o enredo procura começar no fim da vida, mas de forma lúdica. A comissão de frente traz um tripé representando um grande camarim, para falar de Paulo Gustavo como um mestre na arte de se “montar”, isso é, de se transformar completamente a partir da caraterização. O camarim foi o lugar onde o ator passou a maior parte da carreira, dando vida a Dona Hermínia e a seus outros personagens. No desfile, o camarim será o lugar em que ele se prepara para a festa que vai recebê-lo no céu. Jack e Vinicius Pessanha, irmãos que forma a dupla de porta-bandeira e mestre-sala da São Clemente, executam uma coreografia vigorosa e são os guardiões do céu. Como anfitriões da festa, eles têm a chave do céu de Paulo Gustavo.
E que céu é este, afinal? No abre-alas, Tiago Martins subverte a lógica de um céu vindo do imaginário cristão e da história da arte europeia. Na primeira parte do carro, veremos o céu dos humoristas, e nela grandes comediantes como Dercy Gonçalves, Golias e Grande Othelo esperam por Paulo Gustavo ladeados por anjos negros e drag queens. Uma grande escultura representando o ator estará no topo da alegoria. Perucas, bolas de chiclete, unicórnios, arco-íris: uma alegoria que poderia ser um programa comandado por RuPaul ou fazer parte das paradas de Orgulho LGBT.
A biografia artística do homenageado começa no tripé depois desse primeiro carro, que representa a barca Niterói-Rio, trajeto que Paulo Gustavo enfrentou nos tempos em que estudava na Casa de Artes de Laranjeiras (CAL), onde se formou em teatro. A partir daí o desfile mescla os grandes sucessos e personagens criados pelo artista com momentos de sua vida pessoal – há um tripé e um alegoria dedicados ao casamento com o companheiro, o médico Thales Bretas, e aos filhos do casal, Romeu e Gael, através dos quais o desfile afirma a possibilidade de várias formas de amor e de família.
O último carro, que une “220 volts” e “Minha vida em Marte”, de certa forma faz do desfile um ciclo, retomando a ideia de passagem entre planos do abre-alas. Mas, em vez de um anjo com asas de cores fosforescentes, Paulo Gustavo ganha a forma de um robô que, energizado pelo sucesso, parte rumo ao espaço.
(Colaborou Daniela Name)
Ouça o samba da São Clemente para o Carnaval 2022
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Sociólogo. É responsável pela página Carnavalicia e escreve de forma bissexta no Portal Esquerda Online e no blog Vida Carioca.
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