No mundo do samba, baiana sempre teve um sentido duplo, designando não apenas as nascidas na Bahia, mas também o traje das mulheres negras que vendiam quitutes e acarajés em seus tabuleiros de rua e tinham ligações com os candomblés: a bata rendada, o turbante típico dos islamizados, o pano da costa, as chinelinhas, a saia rodada e a anágua engomada; tudo isso adornado por braceletes, pulseiras, fios de contas e balangandãs.
A denominação do traje acaba se estendendo às mulheres que o usam, mesmo que não tenham nascido no estado que deu origem ao termo. Dentre elas, as componentes das alas das baianas dos desfiles das escolas de samba. A primeira referência que temos a uma ala das baianas é bem anterior aos desfiles das agremiações, surgidos no início da década de 1930. O escritor Manuel Antônio de Almeida, no romance Memórias de um sargento de milícias, descreve uma procissão católica dos tempos de Dom João VI:
“Queremos falar de um grande rancho chamado Rancho das Baianas, que caminhava adiante da procissão (…). Era formado esse rancho por um grande número de mulheres negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome; e que dançavam no intervalo dos Deo gratias uma dança lá a seu capricho”.
De lá pra cá, referências não faltam. Grupos de baianas se apresentavam nas festas de Nossa Senhora do Rosário e, nas encruzilhadas entre o sagrado e o profano, faziam parte dos blocos, ranchos e cordões do carnaval carioca que se popularizava na virada do Século XIX para o Século XX. Senhoras dos tabuleiros de quitutes e acarajés, lideres religiosas e comunitárias, protagonistas nos festejos de Nossa Senhora da Penha, elas foram personagens fundamentais na construção do samba carioca, criando inclusive redes de proteção social fundamentais para as populações negras da cidade. Falo de nomes como Tia Ciata, Tia Prisciliana (mãe de João da Baiana), Tia Amélia (mãe de Donga), Tia Veridiana e Tia Mônica (mãe de Carmem da Xibuca e de Pendengo).

Desde que as escolas de samba começaram a desfilar, a presença das baianas foi fundamental, marcando a referência comunitária ancestral e ligando-se também ao encorpamento do canto e à performance da dança coletiva. As alas não foram inventadas pelas escolas — conforme mostramos acima, baianas em cortejo eram presenças marcantes em diversas manifestações e festas sacro-profanas cariocas —, mas acabaram se transformando em pilares construtores de pertencimento e tradição de cada agremiação.
Nos 100 anos de Dona Ivone, presença ancestral da baiana
Visceralmente ligadas às culturas de terreiro, as baianas atravessaram os 90 anos de desfiles como a mais marcante referência de ligação entre as escolas de samba e suas origens negro-cariocas. E neste 2022 que marca o centenário de Dona Ivone Lara, uma das maiores compositoras da história da música brasileira, refletir sobre a importância dessa presença ancestral ganha novo matiz. Entre os muitos papéis que Dona Ivone exerceu no Império Serrano, destaca-se o de componente da ala das baianas.

É claro que, ao longo do tempo, modificações aconteceram. Especialmente a partir da década de 1970, quando os desfiles começaram a sofrer alterações impactadas pela primazia do visual em detrimento de diversos outros sentidos e gramáticas do cortejo, as alas das baianas estiveram sujeitas a várias intempéries. Não foram poucas as fantasias de baianas que, em nome de duvidosas adequações ao enredo, dispensaram alguns fundamentos cruciais da vestimenta, como é o caso do pano da costa e do turbante tradicional.
Outro aspecto que impacta fortemente as alas é o esvaziamento causado pelo avanço de algumas igrejas neopentecostais que operam na lógica da demonização das referências culturais de matrizes africanas. Não são poucos os casos de baianas que, convertidas, pararam de desfilar em virtude do proselitismo religioso. Além disso, senhoras bastante idosas, baianas tradicionais, sentem o peso da idade e a dificuldade de atravessar a avenida com fantasias, muitas vezes, extremamente pesadas.
Papel redimensionado nas comunidades do samba
Apesar desses aspectos, os últimos anos têm apresentado um redimensionamento do papel fundamental que as baianas exercem nas comunidades do samba. Depois dos tempos sinistros dos enredos patrocinados, que chegaram a expor as alas das baianas ao absurdo de se inserir visualmente em homenagem a shampoos, iogurtes, cidades do agronegócio, companhias de aviação, empresas de entretenimento e outras aberrações do gênero, a reconexão das escolas com enredos de temáticas afro-diaspóricas (fato relacionado a diversos fatores que escapam aos objetivos deste texto) tem tudo para reconduzir as alas das baianas ao protagonismo fundamental que elas exerceram desde as origens do carnaval carioca.
A própria construção de sentidos para o papel das baianas como aquelas que representam simbolicamente as tias quituteiras, as mães de santo, as líderes comunitárias da Praça Onze e arredores — região consagrada no imaginário carioca como a África em miniatura citada por Heitor dos Prazeres — faz parte desse processo de reconfiguração das agremiações.
A exacerbação do visual, a centralidade que carnavalescos e artistas plásticos adquiriram na construção dos desfiles, não se sustenta mais nos dias de hoje.
A necessidade de as escolas de samba reconstruírem e fortalecerem os laços de pertencimento com suas comunidades de origem é uma questão de sobrevivência das próprias agremiações, fato que não pode prescindir de um mergulho na ancestralidade da história do samba carioca. As baianas encarnam este sentido ancestral.

Proponho, por fim, pensar que para as culturas de terreiro um saber ancestral não é o oposto de um saber novo. Só é ancestral aquilo que faz sentido no presente e aponta perspectivas para o futuro. Tudo que é ancestral é contemporâneo. O contrário do saber ancestral é o saber antigo, aquele que ficou cristalizado no passado e não conversa mais com Tempo.
Que possamos lembrar, quando a sirene tocar, o repique chamar a bateria e o samba de enredo começar a ser entoado, que cada giro de uma baiana na avenida não se limita a reverenciar o passado, mas aponta para o que pode ser o presente e o futuro das escolas de samba: instituições ancestrais, e por isso contemporâneas, de produção de sentidos de vida, transgressão da morte e afirmação da beleza do ser no mundo.
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Autor
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Historiador, professor, autor de “Almanaque Brasilidades” (Bazar do Tempo) e “Pedrinhas miudinhas” (Mórula), entre outros livros.
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