As luzes apagadas da Sapucaí nas comissões de frente, “novidades” de 2023, aconteceram paradoxalmente em um ano em que muitos elementos que têm sido usados como “fator-surpresa” das apresentações começaram a revelar sinais de exaustão. O público, os criadores e aqueles que escrevem sobre o carnaval das mais variadas formas já apontam desgastes nos recursos e dispositivos tecnológicos (drones, fogo frio, fumaça, led e até mesmo troca de roupa) e de concepção espacial (palco sobre chassis, elemento alegórico virado para as cabines e frequentemente prejudicando a visão da plateia) e processual (narrativas encaminhadas para um ápice, para um momento de “truque” ilusionista ou espetáculo tecnológico).
Tal esgarçamento pouco tem a ver com os profissionais que criam as comissões. Os responsáveis pelas coreografias e encenações no Grupo Especial têm currículos reconhecidos na Sapucaí e fora dela, com grandes feitos no carnaval e nas companhias de dança clássicas e contemporâneas do Rio. Poucos quesitos têm um contingente tão equilibrado em termos de qualidade conceitual e técnica. Nem mesmo quando se considera os carnavalescos as escolas disputam de forma tão parelha quanto nas comissões de frente. Mas esse é um grupo de trabalhadores — sim, toda arte é trabalho, e é importante lembrar disso sempre — e criadores sufocados entre um regulamento cada vez mais direcionado para a cabine dos jurados e a responsabilidade de contemplar e de surpreender o público, em condições bastante adversas.
Há uma cartilha e uma cultura impostas pela Liesa, e elas obrigam que as comissões desenvolvam seus roteiros completos apenas na frente dos jurados. O espectadores perdem: os que estão nas arquibancadas localizadas em lado contrário ao de uma cabine de júri podem ter algumas coreografias completamente vedadas pelo elemento alegórico, ver a apresentação de costas ou simplesmente não assistir ao que é apresentado. Já quem está nas frisas ou nos camarotes rentes à pista pode não enxergar os dançarinos evoluindo em cima das alegorias.
No caso específico das luzes apagadas, a coisa se torna ainda mais complexa. É preciso lembrar que o palco da avenida não é fixo, como o de um teatro convencional, tampouco uma arena esportiva, como a da Superbowl (modelo que parece ter inspirado o departamento de marketing da organização dos desfiles). No palco em movimento por onde passa o cortejo, quando a luz é apagada nos três pontos distintos correspondentes às cabines, também deixam de estar iluminados outros segmentos do desfile que acontecem ao mesmo tempo da apresentação da comissão. E que deixam de ser prestigiados por quem os estaria vendo. Acontecer ao mesmo tempo em diferentes situações especiais é característica elementar de uma obra processual como a passagem de uma escola de samba pela passarela. E é por isso que qualquer coisas que aconteça – da luz que se apaga a uma comissão que se apresenta – deve levar isso em conta.
Algumas perguntas, que poderiam ser respondidas antes de o próximo carnaval chegar:
É justo apagar os sambistas?
Não seria preciso uma maneira mais estudada para o uso da luz?
É preciso reformular o regulamento das comissões de frente?
É possível criar outra forma de julgamento e um processo de formação e diálogo com os jurados?
A Liesa seria capaz de compreender que o público pagante também deve ser beneficiado das criações de profissionais de tamanho gabarito?
Há novas frentes para as comissões?

Para tentar traçar um histórico recente das comissões e procurar saídas para o momento atual, conversei com sete grandes artistas do carnaval carioca, cujo talento é reconhecido não apenas na Sapucaí, mas em outros meios importantes da dança. Agradeço a Alex Neoral, Beth Tinoco Bejani e Hélio Bejani, Marcelo Misalidis, Priscilla Mota, Saulo Finelon e Sérgio Lobato pelos diálogos (ou aulas) que me ajudaram a tecer algumas das reflexões neste texto, cujo resultado final, no entanto, assumo como meu.
‘O elemento-surpresa das comissões não é uma característica apenas de agora, mas já notamos algumas repetições técnicas este ano. E, para fazer uma comissão hoje em dia, nós temos que realmente dançar conforme a música. Temos que nos apresentar para o júri, mas ao mesmo tempo existe a responsabilidade de arrancar os gritos e os aplausos do público. Está subentendido que, se uma comissão que não provocou essa reação das arquibancadas, é porque não aconteceu.”
Alex Neoral, que em 2023 assinou com Márcio Jaú a coreografia da Unidos de Vila Isabel sobre as bacantes, no desfile de Paulo Barros.
Há uma fórmula para conquistar a nota máxima e este é um conflito pelo qual todos nós, coreógrafos, estamos passando. Nós investimos na relação com os bailarinos e eu adoraria poder fazer uma coreografia toda dançada no chão. Mas esse ano fui para a avenida com uma alegoria bem grande, porque ela precisava esconder dois geradores para que a tecnologia não falhasse.
Beth Tinoco Bejani, que, com o marido Hélio Bejani, foi responsável pelas três comissões de frente dos desfiles da dupla Leonardo Bora e Gabriel Haddad na Grande Rio
As duplas Alex Neoral e Márcio Jaú e Beth e Hélio Bejani foram responsáveis pelas comissões de frente mais comentadas dos últimos anos. No desfile de 2022, os Bejani criaram para o enredo sobre Exu uma coreografia que era uma gira, apresentada de foram 360 graus tanto no chão quanto na alegoria, bastante baixa, trazendo dos dois lados formas que também rodopiavam no próprio eixo. Um trabalho que emulava, tanto na plástica quanto na coreografia, o repertório visual e conceitual criado pelos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad para todo o desfile. Para falar do princípio infinito de Exu — ruidosa fita de Moebius que mistura planos, encruzilhada de espaço e tempo — a Grande Rio foi para avenida apoiada em círculos, espirais, espelhos, fios elétricos coloridos em redemoinho e trouxinhas de tecido de um arredondado imperfeito, quase informe. Na comissão de frente protagonizada pelo ator Demerson D’Alvaro, que já é um marco icônico da história dos desfiles, Exu sintetizado no topo do mundo, com tudo ao seu redor girado e girável, e tanto o público quanto os jurados contemplados pela apresentação.
No desfile campeão da Viradouro de 2020, as dançarinas representando as ganhadeiras de Itapuã interagiam com Anna Giulia, atriz-nadadora interpretando a sereia Oxum, que atravessou a avenida num aquário gigante. Apesar da calorosa recepção e do reconhecimento de prêmios — o Estandarte de Ouro, do jornal O Globo, e outros de sites especializados — Neoral lembra que o trabalho foi penalizado pelos jurados, que não compreenderam a apresentação com bailarinos dos dois lados da alegoria, bastante alta para comportar o aquário, de modo a atender aos dois lados da avenida: “Não está escrito em lugar nenhum que eu não podia fazer isso e tentar prestigiar o público, mas perdi ponto porque uma jurada achou que a comissão estava de costas para ela”.
Fábio, Carlinhos e ‘Segredo’
Fundador da Focus Companhia de Dança, Neoral começou nas comissões de frente como bailarino. Em 2005 e 2006, fazia parte da Companhia Deborah Colker, e participou das encenações pensadas pela coreógrafa para a Viradouro. Concebeu sua primeira coreografia em 2009, na Imperatriz Leopoldinense, em desfile de Rosa Magalhães, mas só se sentiu realmente seguro para propor o que realmente queria dois anos depois, também na escola de Ramos, no carnaval de Max Lopes sobre a medicina. Entre 2005 e 2011, um marco significativo mudou o paradigma do quesito.
Em 2010, Priscilla Mota e Rodrigo Negri, dupla e casal que naquele ano trabalhava ao lado de Paulo Barros no carnaval da Unidos da Tijuca, criaram a comissão do enredo sobre o “segredo” usando uma grande caixa preta como elemento alegórico e encontrando brechas para subverter o regulamento. Se o texto da cartilha da Liesa exige um máximo de 15 bailarinos em cena, não existe nada sobre os que estão ocultos, provisoriamente fora dela. E assim o trabalho daqueles que ficariam conhecidos como “Casal Segredo” entrou na Sapucaí com 45 participantes — um elenco em cena e dois dentro da caixa preta, de modo a realizar a troca de roupa e de adereços como “num passe de mágica” e transformar a comissão, ela própria, num segredo. Golpe certeiro para apresentar o enredo.
É inegável pioneirismo da dupla e do carnavalesco Paulo Barros, um dos grandes entendedores do carnaval como espaço cênico. Mas o processo de transformação do quesito não se dá de uma hora para outra. Não há um salto das comissões que traziam baluartes para as alegorias agigantadas e os dispositivos tecnológicos de 2023.
Na década de 1990, com seu fértil trabalho em parceria com a carnavalesca Rosa Magalhães na Imperatriz, o coreógrafo Fábio de Mello aliou uma linguagem circense e de festivais orientais com a dos musicais e “filmes de piscina” de Hollywood. Em suas coreografias, mesclava a dança com elementos cênicos muito simples para criar formas geradas pelo grupo — navios, dragões e outros seres e coisas gerados apenas com o abrir e fechar de leques e capas. Já há aí uma ideia de metamorfose e de mágica, de um vir-a-ser que se dá aos olhos do público e, de alguma forma, registra as próprias características de um enredo em desfile, narrativa que se transforma ao longo de um percurso (físico, plástico, coreográfico e, é claro, percursivo e musical).
Em 2001, na Mangueira, Carlinhos de Jesus, outro criador a marcar a história do quesito, misturou o samba, jamais preterido em suas coreografias, com um elemento alegórico que já desfilou empurrado pelos componentes da comissão. A tenda dos mascates que abria o enredo A seiva da vida, de Max Lopes, revelava o maior dos tesouros da verde-e-rosa: Dona Zica, oculta durante parte do percurso, aparecia com a subida do pano, distribuía flores e fazia uma homenagem a Dona Neuma, falecida meses antes do carnaval daquele ano.
Ainda em 2001, Valéria Martins, egressa da companhia Intrépida Trupe, fez uma proposta ousada para a concepção da comissão de frente do desfile Paz e harmonia: a Mocidade é alegria, concebido por Renato e Márcia Lage. A ideia da coreógrafa era trazer os componentes divididos entre figurinos pretos e brancos, representando jogadores de hockey sobre patins que realmente dançariam sobre rodas. Os patins fariam os dançarinos deslizar rapidamente e os desafiariam a um esforço maior para controlar os movimentos. Também reforçariam ideia de uma mescla entre bem e mal imaginada pelos carnavalescos, que defendiam que tudo está em movimento e que é impossível separar as duas forças em uma lógica bipolar. Os patins foram proibidos e a Mocidade precisou executar a comissão sem esse elemento. No entanto, naquele ano e nos seguintes, as alegorias sobre rodas foram conquistando cada vez mais espaço no quesito.
Marcelo Misailidis acompanhou essas transformações já trabalhando como coreógrafo na Sapucaí. Uruguaio, ele se mudou para o Rio nos anos 1980, para estudar dança. Foi aluno da grande Eugênia Feudorova, trabalhou ao lado do lendário Desmond Doyle na companhia de Dalal Achcar e, na década de 1990, tornou-se o mais jovem profissional a se tornar primeiro bailarino do Theatro Municipal. Começou a trabalhar no carnaval em 1998, ainda sem o advento das alegorias apoiando as comissões.
Em 2005, no enredo sobre fogo do Salgueiro, criou uma comissão de frente usando apenas uma corda para contar a história de Prometeu, criando formas como a de uma “cama-de-gato”. Apenas dois anos depois, em 2007, também na vermelho-e-branco tijucana, assinou a comissão de frente no desfile Candaces. O trabalho já tirava partido de uma alegoria móvel, mas ela era uma escultura representando um bloco de pedra, e era puxada do início ao fim da avenida pelos participantes da coreografia, executada com movimentos bastante lentos, o que a tornava mais difícil em continuidade, e tirando partido do drapeado das capas para criar imagens com o figurino.
Em 2012, Misailidis criou o projeto da Vila Isabel, no enredo de Rosa Magalhães sobre Angola. Se comparamos as duas comissões, há uma característica autoral em comum — a utilização de um elemento cênico fortíssimo e ao mesmo tempo enigmático ou onírico, que apoia toda a coreografia. No Salgueiro, o bloco de pedra. Na Vila, um rinoceronte inspirado em E la nave va (1983), filme de Federico Fellini, representava a força do inconsciente e do desconhecido e se desfazia em pedaços para revelar um baobá.
Nesta segunda comissão, bailarinos interpretando diversos animais da savana africana apareciam e desapareciam na vegetação cenográfica. Uma vigorosa coreografia era executada por um corpo de bailarinos, mas outra parte da apresentação, como a presença de uma mulher-onça, já se dava exclusivamente sobre o “palco” da alegoria. (É interessante notar que a comissão de frente da Imperatriz em 2023, também tinha um forte elemento central em transformação — o varal de lençóis ora virando um palco de teatro infantil, ora as folhas de um cordel, mas a apresentação não investiu em um clímax e sim numa narrativa lúdica para sintetizar o enredo).
Tecnologia poderia ser usada para auxiliar jurados
O coreógrafo também vê um momento de estrangulamento, embora inclua os jurados como outra parte que sofre com esse processo. Tanto Misailidis quanto alguns de seus colegas coreógrafos acreditam que a tecnologia poderia ser usada a serviço do júri. Entre as sugestões dos criadores estão o estabelecimento de uma faixa maior de avaliação, permitindo que a comissão seja avaliada por mais tempo, sem que seja preciso a “virada” para a cabine. Parte desse processo poderia ser acompanhado da cabine dos julgadores, com o uso de câmeras e monitores. Outro ponto importante seria um processo de diálogo e formação de quem julga, de modo que houvesse o entendimento da comissão como uma encenação que é apoiada na dança, mas contempla também teatro, artes plásticas e práticas circenses, entre outras linguagens artísticas. Encenar uma apresentação do enredo pode ter inúmeros caminhos e seria importante que os criadores do quesito não estivessem condicionados a determinados tipos de narrativas para obter a pontuação total.
“O carnaval é hoje absolutamente imediatista, e, pela responsabilidade que temos com nossas escolas, precisamos pensar um projeto artístico que leve em conta a avaliação do júri. O jurado está numa posição ingrata, porque precisa avaliar em poucos minutos produções que muitas vezes tiveram investimentos financeiros muito distintos. Embora o regulamento diga que não é para a avalição ser comparativa, os jurados são humanos. E as justificativas têm demonstrado que eles esperam comissões que tenham um apogeu, um clímax, a hora em que o Lampião vai aparecer voando, por exemplo. Não há muito espaço para encenações mais líricas, apoiadas de fato na coreografia”.
Marcelo Misailidis, que em 2023 assinou a comissão de frente da Imperatriz Leopoldinense.
Autor, com Jorge Teixeira, da comissão de frente da Beija-Flor de Nilópolis deste ano, Saulo Finelon foi um dos que tiraram partido da nova iluminação da Sapucaí. Misturando a releitura com uma pintura de Pedro Américo com a linguagem do cinema, ele e o parceiro imaginaram uma espécie de lanterna mágica, numa tela ultratecnológica de 360 graus, que projetava imagens que propunham uma releitura da Independência do Brasil, com sua reparação histórica a partir do movimento de 2 de julho na Bahia e das lutas afirmativas da atualidade.
“Os jurados são a orientação para a competição, eles vão dando o norte, e a tecnologia é um caminho sem volta. Nós preferimos sempre arriscar mais, para elevar o nível técnico, e isso amplia nossa adrenalina e o risco de penalização. Muitas vezes um trabalho que arrisca menos não é penalizado.
Saulo Finelon, responsável, como Jorge Teixeira, pela comissão de frente da Beija-Flor
Finelon e Teixeira criaram a arriscadíssima e bem sucedida comissão em que Aladim sobrevoava a Sapucaí em seu tapete mágico, no desfile da Mocidade de 2017. Na concepção dos elementos cênicos da apresentação, a tentativa de contemplar um grande comprimento da arquibancada. Apesar da grande alegoria em forma de tenda, que escondia e revelava o próprio Aladim e outros elementos, a encenação do conjunto maior de bailarinos se dava no chão, em 360 graus, enquanto o personagem principal, reproduzido em uma fotografia recortada, realizava movimentos aéreos com o auxílio de um drone, enquanto o bailarino que o interpretava em outros momentos, em “terra firme”, estava oculto na tenda.
Outra característica do trabalho da dupla é seguir à risca uma espécie de “matemática” que orienta todas as outras comissões de frente que optam por percorrer a avenida dançando o tempo inteiro. Há quatro marcações coreográficas, orientadas não apenas pelo percurso, também pelo canto do samba, compreendido como uma unidade de medida. “Dois sambas” correspondem a duas coreografias distintas da principal, mas que mantém a comissão em movimento para o público; “um samba” corresponde à apresentação completa pensada para cada cabine de jurados; “um samba”, o último, é uma coreografia de passagem para o casal de mestre-sala e porta-bandeira, que precisa de uma contenção à sua frente para fazer sua própria performance para o júri.
Reconhecida pelo seu poder de reinvenção e de pesquisa, a dupla formada por Priscilla Mota e Rodrigo Negri também faz cálculos na hora de pensar seu projetos. Uma engenharia bastante complexa é levada em conta na hora de pensar a alegoria da comissão, cujo chassis pode ser rebaixado para que não prejudique a visão das frisas. Além disso, os coreógrafos, que este ano estrearam na vice-campeã Viradouro, procuram criar projetos em que os dois lados da pista sejam contemplados ou mesmo com uma lógica circular, como foi a apresentação sobre Rosa Maria Egipcíaca esse ano. A própria alegoria era um tablado arredondado, adaptado para que sua base também entrasse em processo de transformação através da luz, enquanto os bailarinos evoluíam o tempo inteiro de modo a fazer a cena rodopiar aos olhos do júri e do público.
“O que temos tentado é fazer valer o elemento alegórico. Se ele existe, temos que tirar tudo o que ele pode nos dar. Trabalhamos a altura do chassis para que ele não fique alto demais para as frisas e também buscamos uma apresentação circular, em 360 graus, ou que contemple os dois lados da alegoria. Procuramos ainda utilizar os recursos tecnológicos afinados com a narrativa da coreografia e com o enredo.”
Priscilla Mota, que este ano assinou com o parceiro Rodrigo Negri a comissão de frente da Unidos de Viradouro.
Na parceria com o carnavalesco Leandro Vieira na Mangueira, escola na qual atuaram por três desfiles, entre 2019 e 2022, Negri e Mota viveram experiências distintas nas comissões de 2019 e 2020. Ambas os trabalhos fizeram sucesso com o público e os veículos segmentados da cobertura de carnaval, mas a concepção espacial dos dois e a recepção do júri foi muito distinta.
A arrebatadora apresentação de 2019, síntese do enredo campeão da verde-e-rosa, gabaritou entre os jurados, embora a alegoria representando um museu, onde finalmente estaria “o país que não está no retrato”, escondia o clímax da apresentação de parte do público.
Já em 2020, quando eles optaram por fazer todos os movimentos e transformações do “Jesus da gente” às vistas da plateia, retirando os elementos cenográficos deste Messias contemporâneos de cubos autoportantes, o júri acabou penalizando a apresentação, embora a comissão tenha recebido vários prêmios especializados.
“Fomos a única comissão abrir mão da alegoria aquele ano, pensando justamente no público, e infelizmente acabamos penalizados”, lembra Priscilla.
Dificuldade das performances não é levada em conta
Ex-diretor do Ballet Bolshoi no Brasil, Sérgio Lobato tem passagens por escolas como Viradouro, Portela, São Clemente e Rocinha, e entrou para história ao se tornar o primeiro coreógrafo a apagar a luz da Sapucaí para que a comissão da Unidos da Tijuca se apresentasse. Usar a iluminação da própria avenida foi, segundo ele, uma forma de otimizar os recursos financeiros disponíveis, transmitindo a atmosfera de aparição na coreografia em que a Iemanjá vivida pela atriz Juliana Alves regia as marés da Baía de Todos os Santos.
No ano passado, na mesma escola e no subavaliado desfile de Jack Vasconcelos sobre os erês e a lenda do guaraná, Lobato levou para a avenida uma coreografia composta um palco de movimento cíclico (um balanço dividido entre os tons de amarelo-ouro e azul-pavão, cores da escola transformadas em bem e mal pelo enredo), que funcionava ainda como uma espécie de coxia para os componentes e de Caixa de Pandora guardando elementos que revelavam aspectos da narrativa. O mesmo elenco executava todos os movimentos, do início ao fim da passarela, e a roupa do intérprete do pajé também foi usada como biombo para transformações na cena.
“Realmente é uma pressão desumana buscar a nota máxima sem ferir o público. Além de ousar na tecnologia, busco um trabalho que seja sempre coreográfico do início ao fim, e me cobro que ele atenda às arquibancadas.”
Sergio Lobato, que assinou a coreografia sobre Iemanjá na Unidos da Tijuca e entrou para a história dos desfiles como o autor da primeira comissão a desligar as luzes na apresentação
Hélio Bejani conta que ele e Beth, sua dupla de trabalho e companheira de vida, pesquisam arquitetura, tecnologia e engenharia para realizar seus trabalhos, mas também investem pesado no que é humano. Os dois trabalham há mais de uma década com o mesmo elenco, que não é substituído por outro ao longo do desfile. Ele se ressente de um momento em que é preciso haver um esforço muito grande para se comunicar com o público, o que, no seu entender não é apenas uma questão de respeito, também é uma estratégia.
“O público é muito importante, porque a reação à nossa apresentação aquece a avenida. A comissão de frente tem a responsabilidade de conectar a plateia ao desfile da escola. Há 15 anos tentamos fazer isso sem trocar o elenco, temos uma lógica de companhia. Nossos bailarinos chegam à última cabine extenuados e são avaliados da mesma forma que alguém que entrou em cena poucos minutos.”
Hélio Bejani, parceiro de Beth Tinoco Bejani na comissão de frente da Grande Rio.
Como em teoria o júri não é comparativo — muito embora, como já dito, as justificativas insinuem que é preciso atender a determinadas características —, as avaliações não levam em conta o grau de dificuldade imposto aos artistas que dançam e encenam e nem à equipe que manipula os recursos cênicos/tecnológicos de determinada apresentação. Para quem escreve este texto, isso é um ponto nebuloso da avaliação, que também atinge outros quesitos (uma porta-bandeira que passa dois terços da avenida sem o peso de sua saia enfrenta a mesma dificuldade para evoluir que as demais?).
Mas o que demanda mesmo uma reflexão urgente, por parte daqueles que organizam o carnaval, é o direcionamento da criatividade para um padrão narrativo, técnico e espacial, que pode estar inibindo a capacidade de imaginação dos artistas, fazendo com que as comissões de frente transformem tecnologia em maneirismo e até em máscara para um discurso mal alinhavado. Do modo como essas encenações precisam ser realizadas hoje, é difícil imaginar que alguns trabalhos importantes dos Bejani para o Salgueiro, como a interessante comissão de 2016, pudessem desfilar. O público perde muito, e mais ainda o próprio carnaval.







