No álbum “Tá delícia, tá gostoso”, de 1995, um dos mais vendidos do gênero samba daquela década, Martinho da Vila prestou uma homenagem a um sambista pouco conhecido do grande público: numa das últimas faixas do CD, Martinho canta várias músicas de Cabana e relata um pouco sobre como foi o seu velório na quadra da Beija-Flor de Nilópolis.
Assim como muitos outros sambistas, Silvestri Davi da Silva, o Cabana (1924-1986), morreu sem ter o reconhecimento que merecia. Ele chegou a gravar um álbum e ter músicas gravadas por nomes importantes da música brasileira (como Martinho da Vila, Beth Carvalho e Neguinho da Beija-Flor) mas isso é pouco perto do tamanho de sua importância para o samba, as escolas de samba, o carnaval e a cidade de Nilópolis.
Foi da Ala de Compositores da Deixa Malhar, União Entre Nós e Unidos da Barão de Petrópolis e se transformaria no autor do primeiro samba de enredo (além de outros 4, com destaque para o clássico “Dia do Fico”, de 1962) da Beija-Flor. Embora não tenha participado da reunião que fundou a escola, em 1948, Cabana sem dúvida faz parte de um núcleo seminal da agremiação.
Ao inscrever, em 1953, o Bloco Associação Carnavalesca Beija-Flor na Confederação das Escolas de Samba para que pudesse participar do carnaval seguinte, Cabana mudou definitivamente a história de sua cidade e contribuiu para que a pequena Nilópolis, cidade da Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, fosse conhecida no mundo inteiro pela sua arte. Entusiasmado, colaborava fortemente com a elaboração dos desfiles, do adereçamento de alegorias à montagem de alas.
Desentendimentos com a diretoria da escola fizeram com que o compositor se afastasse da Beija-Flor no fim dos anos 1960. Ele se aproximou da Portela, onde compôs sambas bastante populares, o mais conhecido deles o inesquecível “Ilu ayê”, de 1972. No ano seguinte, voltou para Nilópolis. Em 1975, indicou para sua escola do coração um jovem talento que fazia sucesso no Cordão do Bola Preta e rodas de samba, e que marcaria de forma definitiva a história gerida por Anísio Abraão David. Luiz Antonio Feliciano Marcondes ainda era conhecido como Neguinho da Vala. Em 1976, estreou como intérprete e compositor, abocanhando o campeonato com “Sonhar com rei dá leão” – o suficiente para que se firmasse com novo nome artístico: Neguinho da Beija-Flor.
Iniciativa que transformaria a história de Nilópolis
Com o enredo “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, a Deusa da Passarela pretende resgatar essa e outras histórias. Na sua narrativa, a agremiação pretende mostrar a importância do pensamento preto para a construção do Brasil, desconstruindo a ideia de que os negros só “carregaram o piano” ao longo de nossa história. Para tal, vários sambistas importantes para a história da escola e do carnaval são, no enredo, compreendidos como intelectuais, ainda que formalmente não tenham conquistado esse título. Não por acaso, a letra do samba diz: “Ergui o meu castelo/ Dos pilares de Cabana/ Dinastia Beija-Flor”.
Para além do resgate dessas histórias, a Beija-Flor também traz uma reflexão contemporânea, apontando que o nosso futuro só poderá ser diferente, com perspectivas mais igualitárias, se for criado, pensado e organizado por todos os segmentos da sociedade e não só por uma minoria de homens brancos, heterossexuais e de meia idade.
Cultura, rua e festa reintegraram povos da diáspora
A diáspora negra produziu horror, morte e acabou forjando (e forçando) a reorganização coletiva de milhares de pessoas no Brasil, fazendo com que estas construíssem espaços de sociabilidades totalmente novos. De uma hora para outra, essas pessoas foram arrancadas de seus territórios, destituídas de seus nomes, afastadas de suas famílias, proibidas de exercer suas crenças. No Brasil, criaram novos laços comunitários, através das maltas de capoeira, dos terreiros, do maracatu, das escolas de samba, do futebol e tantos outras manifestações ligadas à cultura, à rua e à festa. A reintegração diaspórica se dá a partir desse tripé.
É sempre necessário resgatar isso, para que a nossa história não seja contada apenas sob a perspectiva dos “vencedores”. Ao longo dela, a intelectualidade hegemônica primeiro defendeu que a sociedade deveria ser embranquecida; posteriormente, veio a (falsa) ideia que a miscigenação produziu uma sociedade sem racismo. Já passou da hora de produzirmos um pensamento que aponte para uma sociedade plural e inclusiva. É nesse contexto que se insere o enredo da Beija-Flor. É para esta demanda que a escola pretende contribuir.
Ouça o samba da Beija-Flor em 2022
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Sociólogo. É responsável pela página Carnavalicia e escreve de forma bissexta no Portal Esquerda Online e no blog Vida Carioca.
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