O ‘Altar de orações’ da União da Ilha
Batizada de “Altar de orações”, a comissão de frente da União da Ilha do Governador mostrou na avenida um sagrado feminino e materno a partir das representações de Nossa Senhora Aparecida e Oxum, e abriu seu desfile de 2022 pela Série Ouro – com projeto assinado pelos carnavalescos Cahê Rodrigues e Severo Luzardo (este, in memorian) -,convocando o que comumente conhecemos como sincretismo entre uma santa católica e uma orixá do candomblé. Embora o enredo da escola, “O vendedor de orações”, tenha dado protagonismo ao escravizado Zacarias, que teria sido liberto pela santa, a comissão de frente abriu o desfile homenageando duas grandes mães do povo brasileiro: Nossa Senhora Aparecida e Oxum.
A figura que liberta as correntes de Zacarias, na comissão de frente dos coreógrafos Priscilla Mota e Rodrigo Negri, não foi a de uma santa branca e de fenótipo europeu. A atriz Cacau Protásio, devota de Aparecida, foi a convidada a encarnar a santa negra na avenida. Além da coroa dourada, Cacau vestiu o manto azul escuro com bordados também dourados, característico da iconografia da Padroeira, como uma espécie de colete que deixava seus braços livres para performar a santa libertária.
A figura de Aparecida aparecia quando as portas de um oratório cenográfico cor de madeira se abriam. Ela vinha emoldurada por um céu azul brilhante representado dentro da peça, e esta paleta de cores da alegoria de “Altar de orações” foi um dos grandes acertos da comissão de frente.
Após libertar Zacarias, Cacau/Aparecida retornava à estrutura interna do oratório, e, no movimento cênico, era como se nossa Senhora fertilizasse o solo de onde Oxum, encarnada pela bailarina Lais Ribeiro, irá brotar. Se Cacau Protásio é devota de Aparecida, Lais Ribeiro é filha de Oxum, orixá da fertilidade, da beleza e rainha das águas doces.
Depois do oratório fechado, Oxum aparecia radiante pelo alto da estrutura da alegoria e, com ajuda dos bailarinos que representam os escravizados, sua enorme saia amarelo-ouro desaguava por cima de toda a estrutura cenográfica, como se Oxum protegesse todos os seus filhos com o poder de suas águas. Conhecidos como “Casal Segredo”, por conta da antológica comissão de frente criada para a Unidos da Tijuca em 2010, Rodrigo Neri e Priscilla Mota utilizaram de truques cênicos simples e visualmente impactantes, mas com encadeamento capaz de mobilizar e emocionar o público na avenida.
“Altar de orações” ecoou uma obra anterior do casal de coreógrafos: a comissão de frente da Mangueira de 2020, quando vimos na avenida um Jesus favelado e oprimido. O desfile da Mangueira naquele ano desfilou o “Jesus da gente” e a “Jesus mulher” sob a pele da rainha de bateria Evelyn Bastos, ambos concebidos pelo carnavalesco Leandro Vieira sob um viés de crítica social e política e contra a subversão dos ensinamentos cristãos e apropriação dos mesmos por políticos atuais. Agora, neste 2022, a União da Ilha exaltou a fé e a devoção religiosa em si, algo do qual a maior parte do povo brasileiro nunca se desvinculou, a despeito de todo o desenvolvimento científico e tecnológico que vivemos hoje.
O poder da fé e reabertura ao sincretismo
Atualmente, uma das premissas básicas difundidas pelas ciências das religiões é o fato de que todas evoluem e mudam com o tempo, e de que não existe um detentor da verdade sobre elas. Ainda que cada uma das religiões do mundo tenham suas escrituras sagradas, suas lideranças, e ainda que as mesmas sejam usadas até hoje para fins políticos e econômicos, a visão de que as religiões são absolutamente uniformes ou puras é simplista e problemática. É partindo deste princípio que abordo aqui o sincretismo religioso por meio das figuras de Aparecida e Oxum, com o intuito de ampliar o horizonte de significação e traçar um olhar crítico sobre o que vimos em “Altar de orações”.

O culto a Nossa Senhora de Aparecida, no Brasil, conserva a memória da dinâmica social que o originou. De acordo com o website do Santuário da “Aparecida das águas”, tendo sido encontrada em 1717 no rio Paraíba do Sul, o culto à imagem em terracota da Santa foi aprovado em 1743 pelo Bispo do Rio de Janeiro Dom Frei João da Cruz, em virtude dos relatos do padre José Alves Vilela acerca da devoção do povo da Vila de Guaratinguetá (e arredores) e dos milagres a ela atribuídos.
Ao observarmos a história em distintas narrativas, é possível ver o esforço empreendido pelos poderes dominantes em tornar a Santa negra um símbolo nacional. Em 1868, a princesa Isabel doou ao santuário um manto para a escultura da santa, ornado com 21 brilhantes, representando as 20 províncias e a capital do Império. Dezesseis anos depois, ofereceu uma coroa de ouro cravejada de diamantes , a mesma usada na solenidade de coroação da santa, que aconteceu em 1904, com o aval do Papa Pio X. Mas foi somente em 1930, após a criação do município de Aparecida, que esta manifestação de Nossa Senhora foi declarada padroeira do Brasil pelo Papa Pio XI, a partir da reivindicação de bispos brasileiros.
Racionalmente, seria fácil supor que a disseminação do culto à Aparecida seria unicamente causa dos esforços da Igreja e do Estado. Entretanto, tal suposição poderia incorrer em algo comum à classe intelectual de nosso país que é a ação de subestimar a sabedoria popular e o poder da expressão devocional do povo. Aí reside, creio, a complexidade de tratar criticamente o fenômeno religioso e toda a simbologia que o envolve.
O fato é que Nossa Senhora Aparecida e as histórias dos milagres a ela atribuídos foram embalados nos de nossa população, o que fez que perdurassem no tempo. Não à toa, a figura que protagonizou o enredo “O vendedor de orações” da União da Ilha é Zacarias, homem negro que, tendo sido recapturado de uma fuga, ao ser levado de volta à fazenda de seu senhor, solicitou ao feitor que parasse na capela, construída para adoração à santa, para rezar. De acordo com a história, as correntes que prendiam Zacarias foram arrebentadas no momento da oração e assim, por meio de sua fé, ele obteve a liberdade de seu senhor que passou a acreditar que Zacarias teria sido abençoado por Aparecida.
Ao longo dos últimos 100 anos. antropólogos tem debatido a noção de sincretismo, algo que gera, ainda hoje, desconforto tanto à igreja católica quanto a alguns líderes de religiões de matriz africanas. Em 1999, a pesquisadora Josildeth Consorte, em texto de 1999, usa o termo “dupla pertença” como corolário do sincretismo do povo de santo, que por vezes se divide entre o candomblé e o catolicismo, o que pode desafiar tanto o pensamento científico racional quanto as religiões. A autora aborda, entre outros episódios, a tomada de posição de ialorixás baianas na década de 1980, ao rechaçarem o sincretismo dos orixás com santos católicos, tendo como finalidade reafirmar a ancestralidade africana. O sincretismo seria, para essas líderes, herança da escravidão e sua manutenção seria algo incoerente nos dias atuais.
Consorte busca, entretanto, tratar o sincretismo como ampliação do universo religioso do africano, ainda que o catolicismo fosse a religião dos seus senhores. “Desse modo,” escreve a autora, “podemos supor que nem todas as crenças e práticas nele compreendidas tenham se destinado a cumprir o papel de iludir o senhor branco em relação ao catolicismo do negro escravo, como se costuma raciocinar, sobretudo diante da associação de santos e orixás, sua face mais popular.” Depois do evento dos anos 1980, a pesquisadora observa distintas posições em terreiros diversos da Bahia, com uma tendência às lideranças mais velhas a verem o sincretismo como parte de suas tradições, enquanto as mais jovens, por sua vez, apostam no resgate de uma africanização sem influências das narrativas europeias.
A partir da leitura da autora, enxergo o enredo da União da Ilha como um vestígio da expressão religiosa de toda uma comunidade. A festividade de 12 de outubro na Ilha do Governador é marcada por procissão com carro de som por várias vizinhanças da região, com direito a entrega de doces às crianças. A partir disso, é possível supor que, ainda que a religião católica tenha sido duramente imposta ao povo preto, com o passar do tempo ela teria sido assimilada não apenas como estratégia de sobrevivência, mas como fonte de devoção verdadeira.
Sabe-se que as festas aos santos católicos eram uma das únicas aberturas oferecidas pelos colonizadores para que a população escravizada pudesse festejar e relaxar de suas labutas. Importante lembrar como as festas dos santos também influenciaram o carnaval em suas origens, sobretudo no sentido de cortejo, e como as matriarcas de terreiro se confundem com as do samba, sendo responsáveis pelas origens da criação das primeiras escolas. A lendária Tia Ciata foi, aliás, uma respeitada mãe de santo, filha de Oxum. De certo modo, se Aparecida é padroeira e mãe do povo brasileiro, Oxum poderia ser considerada a mãe do carnaval. A comissão de frente da União da Ilha se mostrou atenta a essas misturas, e por isso se vinculou tão fortemente à emoção do público.
Se a noção de sincretismo tem sido vista como ultrapassada por alguns estudiosos das ciências sociais por se identificar com, e não combater a dominação colonial, no âmbito de expressões artísticas populares, como o carnaval, essa dinâmica permanece em vigor. Alguém se arriscaria a pensar, por exemplo, que Cacau Protásio estaria desrespeitando seus ancestres africanos ao encarnar Nossa Senhora Aparecida na avenida? Ou que sua devoção à santa não seria legítima?
O recado que a União da Ilha pareceu dar este ano é que sim, Nossa Senhora hoje também é do povo preto. Da mesma forma como, aliás, toda uma classe branca tem feito parte dos terreiros de candomblé e umbanda em todo o país, reivindicando para si a pertença à família de santo. Desse modo, o que procuro esboçar aqui é que, no Brasil, o campo religioso oferece contornos mais complexos quando se leva em conta o marcador social racial.
A volta ao Grupo Especial não aconteceu como esperançava a agremiação insulana, mas seu desfile iluminou e reviveu a noção de sincretismo de uma maneira especial, porque deu protagonismo às duas grandes figuras femininas, mães do povo brasileiro, e ambas ligadas ao poder das águas. “Altar de orações” passou, ainda, uma mensagem de esperança num cenário em que ainda vivemos não só de um luto pandêmico mas um luto por todos que tem sido oprimidos, marginalizados e assassinados pelo poder vigente. Mas talvez haja coisas que podem nos sustentar num panorama como esse: a arte, a fé e um colo de mãe.
Foto do cabeçalho: Riotur.
Autor
Artista, pesquisadora e professora.

