Desfiles usam luz e tecnologia e ampliam teatralidade
Mais um carnaval e, mais uma vez, a presença da tecnologia como protagonista dos desfiles das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro poderia indicar mesmice ou, até mesmo, ausência de aprofundamento cultural. Ao que este pesquisador é logo taxativo: não mesmo.
As agremiações deram prosseguimento a escolhas de enredo de forte significado cultural, afro-brasileiro e indígena, lapidando e matizando a noção de que politização não é, de modo necessário, abordar o tema da política de maneira explícita – como foi necessário em alguns anos do último decênio, em virtude das convulsões do país e de uma desorientação das próprias Escolas.
Se a própria instituição escola de samba faz política ao insurgir-se como quilombo urbano, local de acolhimento, sociabilidade e preservação da negritude e sua cultura, representar neste carnaval os povos yanomami (Salgueiro), basear-se no romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (Portela), ou resgatar figura soterrada pela história oficial (Paraíso do Tuiuti, em relação ao marinheiro negro João Cândido e a Revolta da Chibata), é também fazer política – de modo, ao mesmo tempo, sutil e contundente.
Luz de palco x luz de serviço, como no palco italiano do teatro
Observou-se o aprofundamento do uso da iluminação como recurso plástico e cênico. Cada escola procurou tomar partido dessa possibilidade – em momentos-chave de comissões de frente e outros pontos de desfile –, com algumas se utilizando de modo mais radicalizado.
Caso da Grande Rio, que teve entrada escura em sua comissão de frente e abre-alas – na iluminação e na paleta de cores. A ação de integrante dentro da escultura que representava uma onça (tema do enredo) incrementava a poderosa imagem dentro de um jogo de luz em que a luminosidade dos tecidos dos integrantes da comissão, pontos luminosos do elemento alegórico e dispositivos luminosos distribuídos ao público geraram momentos surpreendentes.
O controle da luz que escurece a arquibancada (vital a partir deste ano) destaca e valoriza o cortejo, o que permite uma analogia com o teatro tradicional (do palco italiano), em que a chamada “luz de serviço” (da plateia) é apagada, favorecendo a imersão e fruição do público na cena e potencializando sua dramaticidade.

Essa nova etapa de implementação dos recursos de luz, novidade que é, não poderia não ser usada de modo comedido por Paulo Barros – carnavalesco marcado por novidades. Por isso, observamos na Vila Isabel arrojo e risco na performance do casal de mestre-sala e porta-bandeira, que bailaram em meio a quase breu total com suas fantasias de efeitos de led acionados por controle remoto. A escolha não foi compreendida pelos jurados do quesito, que não deram nenhuma nota 10 para Marcinho Siqueira e Cristiane Caldas.
Carmen ao lado: na Mocidade, comissão misturada ao público
A comissão de frente da Mocidade trouxe experimentação que pode sinalizar desdobramentos para os próximos anos: levou uma de suas integrantes para a arquibancada, em um gesto (condizente à proposta do enredo) de gerar comunicação direta com o público. Tal realização só foi possível graças ao novo sistema de iluminação, que permitiu a abertura de um foco de luz sobre a “Carmem Miranda” e a expansão do espaço cênico da pista para as arquibancadas. Abriu-se um precedente para mais interação e participação do público.

Na comissão de frente da Imperatriz, cabos de aço fizeram a atriz/bailarina (intérprete da cigana, tema do enredo, “levitar” sobre a representação do fogo), e Leandro Vieira propôs dirigíveis ao longo da apresentação, preenchendo o topo do verticalizado espaço de desfile (marco instaurado pela arquitetura do sambódromo em 1984). Os infláveis, a propósito, são recurso que o carnavalesco já havia usado na representação da lua de São Jorge da Mangueira de 2017, e nos balões do céu de Lampião, no cortejo campeão pela Imperatriz no ano passado.
Outra comissão que se destacou no quesito tecnologia foi a da Porto da Pedra, que abriu o grupo especial com projeções em telão de led, holografias e (também) cabo de aço na estrutura de seu elemento cenográfico (no qual a integrante e artista circense Karine Magalhães era suspensa a 12 metros de altura), já sinalizando a importância da iluminação neste ano.
Uma das qualidades que mais deixam este pesquisador extasiado em desfile de escola de samba é como as diversas partes e artes de um desfile, quando entrosados, evoluem sob a mesma pulsação. A atual iluminação da passarela tem esse desafio e potencial: estar a serviço do pulso musical. Em momentos do desfile da Beija-Flor, pude observar este encaixe – não que outros desfiles não o tenham conseguido.
O apagamento da luz, que destaca a cena por alguns segundos e recorta a pista em novas e diferentes espacialidades, sugeriu a procura de um uso equilibrado da iluminação com os desfiles, sem ferir a natureza de evento a céu aberto de matriz popular.

De modo ambivalente, o desfile de escola de samba, em sua (para)teatralidade, aproxima-se, assim, ainda mais dos grandes shows da contemporaneidade e de algumas possibilidades típicas do palco italiano, tentando não perder a identidade, ou buscando equilibrar-se entre dois campos fundamentais persistentes de sua história: tradição e modernidade.
Protagonista do carnaval deste ano, o Sambódromo, que completou quatro décadas, segue amadurecendo como espaço cênico, ao receber as referidas experimentações de iluminação, que abrem possibilidades de fôlego, renovação, diálogo tecnológico e futuro para a linguagem dos desfiles que se plasmou nessa avenida.
A iluminação, contudo, recurso tecnológico que é, teve a companhia de outros dispositivos que foram empregados com destaque.
A Viradouro investiu em uma serpente (tema de seu enredo) que rastejava na pista e de outra que formava o seu símbolo do infinito (da boca que devora a própria cauda) no elemento cenográfico, ambas durante a performance da comissão de frente. No caso da primeira serpente, o bailarino e coreógrafo Wesley Torquato, dentro da representação da cobra e sobre um skate, dirigia os movimentos da mesma por meio de suas mãos e de acionamento de controle remoto. Mais uma realização assinada pelo casal de coreógrafos Priscilla Mota e Rodrigo Nery, responsável por pelo menos outros dois dos grandes momentos desse quesito que contemporaneamente catapulta desfiles (“É segredo”, Tijuca/2010, e “História pra ninar gente grande”, Mangueira/2019).
A Grande Rio, mais uma vez na lida tecnológica (esta ligada a profissionais da Festa do Boi de Parintins) ostentava uma coroa que se transformava em máscara (símbolo teatral precursor e poderoso), metamorfoseando a sua rainha de bateria (Paola Oliveira) em onça. Mais um efeito acionado na Avenida por meio de controle remoto, operado pela estonteante rainha. Registre-se também como inevitável a evocação que tal imagem faz(ia) da origem ritual da arte do teatro: através das ações mágicas e transmutadoras de conexão do humano com o sagrado por meio da mimetização de animais, de modo similar aos ritos de antropofagia tupinambás (abordados pelo enredo).
O efeito de inclinação dos corpos dos integrantes da comissão de frente do desfile da Mangueira sobre o elemento cenográfico também é algo que se destaca e gera curiosidade quanto à sua realização.
No “maior espetáculo da Terra”, feito para público in loco e via TV e demais dispositivos (como smartphones), o esmero com figurinos e caracterização é algo que o confirma como potente atração audiovisual. Vide os exemplos das fantasias das baianas do Salgueiro ou a ala “Sonhar com rosas”, da Imperatriz. Cuidado e detalhe capturados pelo olho apurado das câmeras.
Dramatização é um destaque na Portela
As comissões de frente, orientadas de modo mais frequente para a linguagem da dança ou da dança-teatro (possivelmente pela necessidade de causar dinamismo e impacto em imenso espaço e de intensa cobertura midiática), tiveram no trabalho da Portela um momento de pura e delicada dramatização: sobre o elemento alegórico dava-se o encontro entre mãe (Luíza Mahin/Kehinde) e filho (Luiz Gama), apostando no tom emocional do enredo. A Portela também investiu muito na compreensão das alas como espaço cênico. Chamam a atenção o uso de luzes na ala que antecedia o carro da Iemanjá negra, sobre a travessia atlântica, e o uso de espelhos nos chapéus da bateria, característica da orixá Oxum.
Em determinado desfile, observei algo que entendo como incoerência, mas que que creio dispensar a necessidade de nomear qual escola o realizou, pois a reflexão fica para toda a comunidade do samba. Se há em curso, de fato, uma tentativa (talvez não explícita e ainda lenta e cuidadosa) de apresentar novas caras nos postos de poder e de criação das agremiações, incluindo pessoas negras – para além do campo da representação, este no qual a afro-brasilidade já voltou a ser escopo e preocupação –, é estranhíssimo notar que em um desfile de enredo afro as duas principais destaques do carro abre-alas, que representava um quilombo, eram mulheres brancas.
A linguagem contemporânea dos desfiles assimilou uma hierarquização de poder que ocorre nas escolas e garante a presença de pessoas ligadas aos seus mandatários nos lugares mais altos das alegorias, mas a considerar a ideia de representação e a força atual da noção de representatividade, é preciso haver mais coerência – se não com a origem das Escolas, pelo menos com o enredo abordado e seus aspectos sígnicos.

Como pesquisador de teatro, arte e carnaval, retorno de modo constante à pulsão alegórica das escolas de samba e no esforço criativo que carnavalescos precisam fazer para aliarem sua criatividade e leitura por parte da recepção. Neste sentido, sempre me faço a pergunta: será que sem o auxílio da narração televisiva (que não deve prescindir de base jornalística!), sem o apoio do Livro Abre-alas (distribuído pela Liesa aos jurados) ou de qualquer outro suporte – de sinopse ou similar – o espectador(a) consegue fazer a leitura do que é trazido por cada desfile de modo pleno? (Lanço esta pergunta sem medo de perguntar o óbvio, pois, como artista cênico, entendo que quem produz teatralidade deve pensar no público e, portanto, renovar de modo periódico esta mesma indagação).
Não que se tenha que compreender tudo e de modo racional, ou que o público não seja capaz de dialogar com as criações, pois o campo da arte transcende essas necessidades (já que abrange a sensorialidade) e o público nunca deve ser menosprezado em sua inteligência. Contudo, nessa expressão com base na alegorização e na construção musical, demonstra-se indispensável a qualidade técnica do espaço e também o oferecimento de alguns suportes. Li um comentário na rede social que pede a melhora da qualidade do som na avenida e dos camarotes – através de projeções da letra dos sambas – a fim de se poder entender melhor cada enredo.
Tal reclamação me parece consistente, pois na linguagem da escola de samba aquilo que corresponde ao “texto” no teatro convencional (que é dito em palavras dialogadas) dá-se através da execução/compreensão do canto, da dança e da plasticidade no espaço-tempo da passarela.
Peso de algumas fantasias desrespeita o desfilante
Encerrando a crônica de aspectos cênicos dos desfiles neste 2024, em verão que assusta pela violência com que o aquecimento global avança, há que se fazer uma inflexão sobre fantasias e adereços. Estive na pista e pude presenciar muitos e muitas componentes passando mal dentro de fantasias quentes, pesadas, sufocantes (o que se agrava com o suor) e caindo pela dispersão ou sendo atendido(a)s pela emergência. Em qualquer grande espetáculo os artistas experimentam os figurinos nos ensaios para se poder prever justamente esses tipos de problemas – e, ainda assim, problemas ocorrem.
Não se trata de uma crítica moralista, punitivista ou cerceadora, pois aqui escreve um artista-pesquisador que sabe das necessidades e limitações várias enfrentadas pelos carnavalescos para produzirem desfiles contundentes em espaço cênico marcado pela verticalização com o advento do sambódromo. Mas se escola de samba faz carnaval e a essência desta festa é brincar, há que se olhar com atenção para esse ponto: muitos desfilantes (incluindo pessoas idosas) não estão conseguindo ter prazer ao longo do desfile por conta das funções recebidas, e só o fazem pelo amor e pertencimento que têm por suas agremiações.
Encerro essa crônica teatral-carnavalesca refletindo a notícia de esgotamento de exemplares do livro Um defeito de cor a partir do desfile da Portela em uma grande rede de livrarias. Isso reforça para este pesquisador duas coisas: o poder de pedagogia de massas e de vitrine e venda da teatralidade dos desfiles das escolas de samba.

Em um país de diários ataques de intolerância religiosa e depreciação das formas culturais afro-brasileiras, os desfiles das escolas de samba conseguem falar sem amarras sobre suas divindades em rede nacional e internacional, como é o caso da campeã oficial do carnaval, Viradouro, que abordou a divindade vodum Dangbé, da África jeje.
O palco-Sapucaí com a estrutura do “Sambódromo” – criada no governo Leonel Brizola, idealizada por Darcy Ribeiro e projetada por Oscar Niemeyer – faz 40 anos como espaço-tempo e tambor que ressoa os grandes temas do país e palco mais popularmente mobilizador das artes cênicas no Brasil.
Foto do cabeçalho
Desfile da Portela – Marco Terranova/Riotur
Autor
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Ator há 25 anos, atuando em teatro, cinema e TV. É autor do livro "Arte total brasileira – A teatralidade do 'Maior show da Terra' (Ed. Cândido). Doutorando em Artes (UERJ), mestre em Arte e Cultura Contemporânea (UERJ) e graduado em Artes Cênicas (UNIRIO). Professor nos cursos de Teatro, Cinema e Produção Audiovisual da Universidade Estácio de Sá e na pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo (PUC-Rio).
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Ator há 25 anos, atuando em teatro, cinema e TV. É autor do livro "Arte total brasileira – A teatralidade do 'Maior show da Terra' (Ed. Cândido). Doutorando em Artes (UERJ), mestre em Arte e Cultura Contemporânea (UERJ) e graduado em Artes Cênicas (UNIRIO). Professor nos cursos de Teatro, Cinema e Produção Audiovisual da Universidade Estácio de Sá e na pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo (PUC-Rio).

