Sinto fome, estou faminta. As entranhas vazias ecoam. É um tipo de fome que comida nenhuma no mundo sacia. Fome de carnaval, de folia. Dia 18 de abril de 2022 fui até a Cidade do Samba para buscar minha fantasia da ala de passistas da Mocidade Independente de Padre Miguel. Enquanto passava pelo túnel andando até chegar à Central do Brasil, junto a outros colegas de ala, como um ritual que voltava a se repetir, uma espiral de pensamentos e sensações me atravessaram como o trem que corta a cidade, no qual embarco toda vez que vou à quadra da minha escola ou ao desfile de rua. Em 2022 completo cinco anos como passista dessa escola que me embala desde o útero da minha mãe, que é baiana da mesma. Neste ano retomamos o ciclo de festividade que foi interrompido pela emergência da pandemia de Covid-19. A fome de carnaval toma o corpo que precisa de comida, ar, água, pra se manter de pé, mas anseia a folia, o encontro com os outros sambistas da ala, com os amigos da comunidade para renovar o axé.

Convido a olharmos para um passado recente, quando criei a série de fotografias Farinha Cósmica em 2018, onde mastigo purpurina prata e deixo salivar e escorrer essa baba cósmica. Eu já havia iniciado meu mundo de passista e já havia sido tomada por ele, mas não fazia ideia de que essa fome seria vivida integralmente e que chegaria em um ponto inimaginável. O samba cura, “o samba é o remédio da alma”, como diz o samba da co-irmã Unidos de Padre Miguel. E foi no samba que já vivia na minha casa desde pequena, através do amor da minha família pela Mocidade, que eu pude entender a conexão com a minha ancestralidade afro-indígena, que eu pude me reaproximar da negritude da minha família e assumir minha origem periférica, banguense. No meio elitizado, branco e misógino das artes visuais ainda é muito fácil, na tentativa de se enquadrar, se perder no meio do caminho e esquecer quem você é e de onde vem. O samba me lembra, o samba me conecta com uma energia ancestral e bagunça as hierarquias de pensamento.
O centro de pensamento cai, despenca. Penso com os pés, com o quadril, com meu útero. O rebolado, o floreio, o riscado, a tesoura em cima do salto no asfalto, desviando do buraco, passando pelo quebra-molas, avisando o colega de ala do risco para não cair, tudo isso vem com força nas minhas criações artísticas, tudo junto e misturado. Na ala a gente se ajuda, a gente é comunidade. A escola de samba ainda é a sua comunidade, ao contrário do que muitos “intelectuais” falam. Em meio à pandemia, quando a crise econômica e humanitária estava eclodindo, foi na minha comunidade, nas alas da Mocidade, que vi os maiores atos de solidariedade. Nos ajudamos antes, durante a pandemia e continuaremos assim, porque, apesar do pesares, isso é o samba, é o encontro, é a celebração dos corpos, do ritmo, do povo. O que as pessoas veem no desfile na televisão é uma pequena parte do que vivenciamos ao longo de todo ano cíclico do carnaval. Dos encontros com as outras escolas co-irmãs, das feijoadas e ensaios na quadra, das reuniões, dos shows, dos ensaios de rua (acontecimento em Padre Miguel!) e de tantas outras experiências que fogem do raciocínio lógico, extravazam, escorrem, transbordam, os pés, os quadris, a garganta que ecoa o samba e nos ensina outros modos de sentir e ver o mundo.
Assim como nos meus trabalhos artísticos e no sábado dia 23 de abril no desfile, eu convoco uma dança de feitiçaria, piso no rastro para bambear o pensamento de quem me olha torto, de quem acha que o samba se dobra, da nesga do ranço colonial, dos irmãos e irmãs que ainda não entenderam que a mídia faz parte da festa, mas não é a dona dela…escuto Exu gargalhar …no ar o barulho da flecha certeira e Oxóssi…a festa recomeçou.


