A figura de Lampião e a empreitada de caça ao cangaceiro tem alimentado o imaginário do país desde o final da década de 1920. Para além de seus atos em vida, seu destino pós-morte também foi objeto de especulação, especialmente por poetas que publicaram cordéis que imaginavam sua chegada ao céu, ao inferno, e ainda suas supostas conversas com figuras sacras como São Pedro e Padre Cícero. Leandro Vieira tomou essa especulação sobre o destino espiritual de Lampião como ponto de partida para o desfile campeão da Imperatriz Leopoldinense de 2023.
Em meio ao belo conjunto apresentado, resultado de um recorte e desenvolvimento bem elaborados a partir do tema, ressalto aqui as representações de cabeças degoladas representando o assassinato de Lampião e de outros cangaceiros de seu bando, apresentadas na segunda alegoria, Dia 28: rebuliço no olhar do mamulengo, e na última, O destino do valente. Como elas nos falam sobre as possibilidades da montagem na alegoria no carnaval enquanto, entre outras coisas, discurso e imagem de persuasão?


As mencionadas alegorias de Leandro são carnavalizações da famosa fotografia feita nos degraus da prefeitura de Piranhas, Alagoas, no dia em que o bando fora assassinado por tropas do exército brasileiro, em 28 de julho de 1938. A fotografia registra 11 cabeças degoladas, entre elas as de Lampião – na base da pirâmide formada pelas cabeças – e, logo acima, a de Maria Bonita. De autoria incerta, a imagem circulou intensamente por jornais locais e nacionais por cerca de uma semana, quando então fora proibida pelo Ministério do Interior.
O carnaval de Leandro não só toma essa fotografia como referência, como também amplia as possibilidades de voltarmos nosso olhar para ela e perceber outras dimensões, particularmente o modo como ela foi montada e encenada de modo que passasse a funcionar também como uma alegoria.
Primeiramente, a fotografia e sua ampla divulgação significaram uma espécie de troféu, uma forma de afirmar e comprovar a morte de Lampião e a vitória da República sobre o cangaço e sobre aqueles considerados criminosos e subversivos, que desafiavam o poder estatal central por meio de organizações regionais que promoviam insurgências e reivindicavam autonomia. Essa pá de cal era desejada pelo Estado brasileiro, tendo em vista que Lampião e seu bando adquiriram uma enorme popularidade, principalmente a partir dos primeiros anos da década de 1930. Como lembra o pesquisador Rafael Cardoso, o rosto do líder do cangaço era um dos mais reconhecidos do país, rivalizando com o do presidente Getúlio Vargas.

Lampião era alvo de interesse de jornalistas e cinegrafistas, os quais cobriam não só suas ações e incursões, como também, de forma sensacionalista, seus gostos pessoais e hábitos, entre eles o notório interesse do bando pela costura e pelo desenvolvimento de uma identidade visual que os distinguisse. O cangaceiro era tema de músicas de carnaval, e sua imagem aparecia em jornais e revistas (como na extensa reportagem publicada em 1937 em O Cruzeiro, a revista mais lida do país), além de ser usada em anúncios publicitários, o que lhe impregnava com um verniz de astro de cinema.
Aspecto relevante na fotografia é a presença de objetos variados ao redor das cabeças: além de armas como rifles e facas, também estão dispostos máquinas de costura, chapéus de couro, embornais bordados, faixas e cinturões ornados com moedas de ouro. Entre as intenções do arranjo estava dar um basta não só à empreitada de Lampião, também ao cangaço enquanto um movimento cultural e ideológico, estigmatizando, por meio da montagem alegórica, suas produções materiais características ao associá-las à condição degradante conferida às cabeças profanadas e insepultas, bem como aos crimes a elas associados.
Projeto de “brasilidade” de Vargas purgou o cangaço
Quando contextualizamos essa querela, localizada na década de 1930, momento no qual o Estado Novo de Vargas empreendia um projeto de “brasilidade” para a cultura nacional, o arranjo estigmatizante e violento da fotografia adquire conotações racistas. A estigmatização daqueles corpos racializados e de sua cultura material, bem como de seus comportamentos inconformistas e questionadores, os exclui de um projeto nacional de embranquecimento que dilui negros, negras e indígenas nas figuras do “mestiço” e do “brasileiro”. Novamente, o pesquisador Rafael Cardoso apresenta esse diagnóstico para ressaltar a assimilação nesse projeto de figuras mestiças, pacíficas e heroicas, como por exemplo o Mestiço (1934) e o Lavrador de café (1934) de Portinari, em detrimento de figuras consideradas subversivas, como Lampião e o líder marinheiro João Cândido, por exemplo.
Ainda para ressaltar o uso perspicaz por Leandro da montagem na alegoria Dia 28: rebuliço no olhar do mamulengo, menciono a fotografia feita pelo artista Luiz Alphonsus, em 1979, de um Exu “mefistófeles” presente no acervo do Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro e analisada pelo pesquisador Arthur Valle. O acervo é constituído por objetos apreendidos em batidas policiais, muitos deles em terreiros de religiões de matriz africana. As apreensões foram realizadas até meados da década de 1940, quando ainda estava em vigor uma legislação penal que criminalizava oficialmente essas práticas em nosso país. Nesse caso, ao enquadrar e “montar” a imagem de Exu junto a uma flâmula nazista ao fundo, Alphonsus expõe a estratégia de estigmatização por meio da apreensão e reunião de determinados objetos considerados igualmente vestígios de práticas criminosas, com a polícia equiparando a um símbolo nazista um objeto de culto de matriz africana, prática resultante de uma legislação preconceituosa e racista.

Voltando ao carro alegórico de Leandro, o carnavalesco não só se compromete com o visual, mas também com sua montagem e encenação enquanto discurso. Com isso, toca nos fundamentos da alegoria, entendida aqui como a combinação de elementos e motivos para gerar um novo sentido ou conceito.
Ao optar por representar as cabeças degoladas como um teatro de mamulengos e lembrando que a inversão é um dos pilares do carnaval, Leandro assume a encenação alegórica e inverte a perversidade da fotografia, expondo então a estratégia teatral, estigmatizante e difamatória empregada na montagem da icônica fotografia das cabeças degoladas. A grande escultura de um bonequeiro que manipula os demais bonecos parece encarnar o anônimo montador das cabeças na escadaria da prefeitura de Piranhas, de quem a fotografia só nos permite ver a tétrica obra.
A crítica do carnavalesco não se resume a expor essas estratégias difamatórias que, diga-se de passagem, foram muito utilizadas nos últimos anos pela extrema direita na produção de fake news. Ao optar pelo teatro de mamulengos, Leandro reconhece a relevância dessa expressão artística e cultural e a elege como linguagem enunciadora para narrar o episódio a partir das suas especificidades de linguagem.
Isso fica evidente nas duas esculturas presas às mãos da grande figura central do bonequeiro. Trata-se de dois fantoches acéfalos que carregam suas cabeças em bandejas, o que pode ser entendido como uma referência invertida à conhecida iconografia judaico-cristã de Salomé, personagem bíblica que pede a cabeça de João Batista, um líder popular carismático, ao rei Herodes e a entrega em uma bandeja à sua mãe, Herodíade. É uma forma de argumentar que projetos hegemônicos que pretendiam afirmar uma brasilidade única e pasteurizada, tendo no topo a cultura branca, eurocêntrica e judaico-cristã, e que reivindica para si predicados como “brasileiro” e “patriota”, não venceu, sendo as expressões regionais, oriundas da diversidade étnico-racial, de classe e de gênero, também linguagens enunciadoras e vetores de poder.

A recorrência do chapéu característico de cangaceiro ao longo de todo o desfile, muitas vezes utilizado em outros desfiles de escolas de samba como elemento que generaliza e reduz a diversidade do Nordeste a uma única expressão, não é gratuita no desfile da Imperatriz, mas um elemento visual que também enuncia a argumentação do enredo. Sua presença, além de ser uma personificação de um Lampião que continua presente no imaginário popular, em figuras como Mestre Vitalino, Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré, como defende o enredo, é também uma forma de reafirmar a estética e a cultura do cangaço enquanto ícones culturais que escaparam às tentativas de marginalizá-las e subalternizá-las. A alegoria de Leandro é uma inversão da empreitada ideológica malsucedida daquela tétrica fotografia.
Foto do cabeçalho:
Diego Mendes/ RioCarnaval
Referências:
CARDOSO, Rafael. Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945. São Paulo: Companhias das Letras.
VALLE, Arthur. Um Mefistófeles afro-brasileiro? Considerações sobre uma extinta imagem de “Exu” do Museu da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. XI, n. 1, jan./jun. 2016.
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.
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