Quando o carnavalesco Leandro Vieira anunciou o enredo da Mangueira para 2022, houve quem criticasse o partimento da homenagem a três dos baluartes da escola. Cartola, Jamelão e Delegado, argumentou-se, mereciam cada qual um enredo. O modelo da tríade, contudo, já havia sido utilizado, e com sucesso. Em 1984, os “Contos de areia” da Portela prestou tributo a Clara Nunes, Natal e Paulo da Portela. E com sucesso: a azul e branca foi uma das campeãs daquele ano.

Mas um enredo se mostra de fato é mesmo no desfile. E a passagem da Mangueira foi coesa, a partir de uma costura entre as trajetórias dos três homenageados cuja fio de interseção era sua relação com a comunidade onde se localiza a escola. Não à toa, o abre-alas fazia referência à favela: origem e espaço de pertencimento.
O investimento em uma Comissão de Frente complexa e ao mesmo tempo extremamente emocional, concebida por Priscilla Mota e Rodrigo Negri, foi um grande acerto. Caracterização, coreografia e o truque ótico que fazia os cidadãos comuns do Morro de Mangueira revelarem seu potencial de gênios, a exemplo de Cartola, Jamelão e Delegado, deram ao início do desfile um poder de comunicação muito poderoso com a plateia – tanto a presencial, nas arquibancadas e frisas, quanto a que assistia ao desfile pela TV.

No entendimento plástico de conjunto, a escolha de Leandro Vieira por uma Mangueira “em 50 tons de rosa” causou estranheza naqueles que podem não ter entendido como o artista, antes de tudo um pintor, procurou se conectar com o que o enredo da escola irradia – o orgulho da comunidade mangueirense do triunfo de sua gente e seu samba. Uma escola de samba é uma força de reconexão e de cura para os povos da diáspora – é isso que um pavilhão também representa, além de guardar as histórias específicas de cada agremiação. Louvar o chão da Mangueira sem a radicalidade e suas cores não faria nenhum sentido, e Leandro também soube “quebrar” o verde e rosa salpicando azuis de vários matizes e tons de lilás e violeta ao longo do desfile, criando ainda clarões em amarelo vivo, como nos sóis de Cartola, ou palha, e pontuando o vermelho na alegoria da gafieira de Jamelão.
No desenho de chapéus, golas, saias e casacas, a citação aos desfiles dos quais a “trinca de reis” dos homenageados participaram, além de uma celebração oculta ao carnavalesco Júlio Mattos, maior campeão da história da Mangueira, e associado pelo senso-comum a uma estética da “Mangueira cafona”. Para nós, e também para Leandro, pelo que ele apresentou na avenida, Júlio representa o mergulho despudorado na cultura popular e suas referências, e talvez por isso o seu casamento com a Mangueira, cuja identidade está cerzida a esses valores, tenha sido tão frutífero.
Cartola, trunfo e triunfo da verde-e-rosa, foi também o do desfile de 2022. O primeiro segmento, dedicado a ele, é o grande casamento plástico-conceitual do desfile, com a ala vestida de sol trazendo o otimismo e a doçura de um sábio conselheiro; o tripé porta-retrato lembrando as fotos na janela com a grande companheira – o homem que era de casa, do morro, mas se abria para a universalidade do mundo; e o carro alegórico com o jardim de “As rosas não falam” exalando o perfume de Zica e mostrando que um bom desfile também nasce do momento em que o artista que o concebe põe um pouco (ou muito) de si naquilo que apresenta. A alegoria com pombas e rosas foi inspirada em um bibelô de louça da casa da avó de Leandro, e trouxe para o jardim de Cartola uma atmosfera de decoração suburbana. Ambiente perfeito para o compositor, que fugiu dos estereótipos de força e de sexualidade associados ao homem negro, revelando sua alma filosófica e derramando amor no que escrevia e cantava.
No segmento dedicado a Delegado, outro grande achado – as porta-bandeiras com as quais o mestre-sala dançou transformadas em estandartes. Metáfora e metonímia que faz dos artistas que fazem a história de uma escola sua verdadeira bandeira. Nesta parte do desfile, fica uma primeira sensação de que talvez pudesse ter sido transposto, para o corpo dos componentes de uma ala, o vigor com que Delegado dançava. O príncipe negro foi retratado nos minuetos com bandeiras de vários momentos da história da escola, e reconfigurado como o nobre afro da fantasia “Obá da favela”, mas é possível que um pouco mais de movimento e de rapidez dessem mais exuberância e comunicabilidade a esse final de cortejo, além de enfatizar o corpo – instrumento da arte de Delegado.

O samba de Moacyr Luz e parceiros não aconteceu. Quem apostava na catarse ocorrida em 2019, com “Histórias para ninar gente grande” (Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo e parceiros), perdeu suas fichas. Não que tenha havido qualquer prejuízo à evolução da escola, mas as arquibancadas definitivamente não foram conquistadas nesse quesito, o do samba de enredo. Quem apostou que seria um fiasco, também. A bateria de Mestre Wesley colaborou com a atmosfera de “A Mangueira chegou” enfatizando pratos e caixas, e fazendo bela, mas curta paradinha com os timbaus (uma das marcas do desfile campeão de 2019). O canto dos componentes embalou uma verde-e-rosa que desfilou feliz, orgulhosa de suas tintas, sua gente, sua história.
Autores
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Escritor e jornalista. Autor dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, 2021), "Rua de dentro" (Record, 2020) e "Ferrugem"(Record, 2017), entre outros.
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