Em 2022, a Mocidade Independente de Padre Miguel homenageia, ao mesmo tempo, sua bateria e seu padroeiro Oxóssi com o enredo “Batuque ao Caçador”. O que conecta os protagonistas do desfile desenvolvido pelo carnavalesco Fábio Ricardo é o toque o Agueré, consagrado ao orixá caçador, que é codificado pela bateria da Mocidade desde suas origens.
Essa história começa com a diáspora africana e a sobrevivência de seus saberes percussivos nos terreiros brasileiros, de onde são transmitidos para as baterias de escolas de samba. Toques originalmente dedicados a determinados orixás são adaptados – o que não quer dizer que sejam literalmente copiados – para a dinâmica do samba de enredo, provocando conexões entre o sagrado e o lúdico.
Para citar outros exemplos, além do Agueré da Mocidade, no livro “O corpo encantado das ruas” o historiador Luiz Antonio Simas conta que os ritmistas da Mangueira aludem ao Ilú de Iansã/Oyá desde a década de 1930; em 2018, a bateria da Império da Tijuca tocou, em alguns trechos do samba, o Opanijé de Omolu, orixá que era saudado no enredo daquele ano. Este ano, o mestre Nilo Sergio também leva para a bateria da Portela uma adaptação do Ijexá de Oxalá, já que o Orixá é evocado em um dos versos do samba. Perceber essas nuances é fundamental para se destacar as singularidades, as complexidades e os saberes que existem por trás das baterias, que são os corações das escolas de samba.
Simas afirma que “escolas de samba e terreiros são, em larga medida, extensões de uma mesma coisa: instituições associativas de invenção, construção, dinamização e manutenção de identidades comunitárias, redefinidas no Brasil a partir da fragmentação que a diáspora negra impôs. O tambor é talvez a ponte mais sólida entre o terreiro e a avenida”.

Entre África e Padre Miguel existe a importante figura de Tia Chica, mãe de santo do bairro. Além de ter sido uma das primeiras baianas da Mocidade, sua casa foi um os berços da escola e fundamental para a configuração da identidade de sua bateria. A “mandinga de Tia Chica fez a caixa guerrear” quando, em seu terreiro, tocadores de atabaque traduziram o Agueré de Oxóssi para as caixas de guerra da Mocidade, sob regência de Mestre André que, não por acaso, era ogã naquele terreiro. A mistura de cadência e rapidez, característica do caçador transmitida para os ritmistas da escola e por eles transformada, confere uma levada única à Não Existe Mais Quente – bateria que, nos tempos de Mestre André, criou as famosas “paradinhas” e inverteu a afinação dos surdos.
A história do samba e das escolas de samba cariocas seria inimaginável sem o empenho de matriarcas que abriram suas casas para experiências comunitárias, desde Tia Ciata, no início do século XX. A casa de Dona Ester, no bairro de Oswaldo Cruz, é considerada o embrião da Portela, assim como a casa de Tia Eulália, no morro da Serrinha, em Madureira, é cultuada como local de fundação do Império Serrano. Ao falar de Tia Chica, não podemos esquecer de Dona Maria do Siri, que cedeu seu quintal como primeira quadra de ensaios da Mocidade na década de 1950. Ao homenagear sua mãe espiritual, a escola da Zona Oeste revisita suas raízes – mas também os pilares femininos da cultura popular brasileira – e celebra a gramática que existe nos tambores.
Ouça “Batuque ao caçador”, samba da Mocidade em 2022.
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Crítico e historiador da arte, mestre e doutorando em Artes Visuais pela EBA-UFRJ.
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