Um dos personagens mais instigantes para se entender o Brasil é um jovem preto, que morreu aos 27 anos, no Recôncavo Baiano, onde nasceu e fez fama como capoeira, e se tornou uma das lendas mais poderosas do país, reverenciado na literatura, na música, no teatro, no cinema e, agora, como enredo do carnaval da Império Serrano. Como se fosse o único “título” que lhe faltava Besouro Mangangá, ou Besouro Cordão de Ouro, alcança pelas mãos de Leandro Vieira um espaço consagrado nas escolas de samba.
Estiva une Besouro ao Império
O gesto de Leandro, ao trazer Besouro do Recôncavo Baiano para a Sapucaí, enlaça a trajetória do capoeira, que nasceu em Santo Amaro da Purificação à história da agremiação carnavalesca criada no Morro da Serrinha, em Madureira. Uma escola de samba, ao mesmo tempo, definitivamente assentada na zona portuária do Rio de Janeiro, onde foi pensada como espaço de aquilombamento político e artístico por ícones como Mano Eloi, fundador do Prazer da Serrinha, que deu origem ao Império Serrano, e liderança dos trabalhadores da estiva. Besouro também era trabalhador, além de vaqueiro, foi mestre do saveiro “Deus me Guie”, que atravessava a Baía de todos os Santos em direção a Salvador, levando mercadorias que chegavam pelas canoas do rio Subaré. Morava e reinava no Trapiche de Baixo, em Santo Amaro.

O próprio Leandro, ao escolher Mangangá como enredo do aguerrido Império Serrano, reafirma sua coerência como artista que, ao articular o popular e o político, não perde de vista a importância da fabulação como método de encantamento do mundo e ferramenta para luta. Uma esfera por onde Besouro transitou com maestria, com o corpo fechado para enfrentar seus algozes.
O compromisso com o encantamento está fincado no enredo do Império Serrano, o que se torna evidente quando Leandro recupera um ponto de juremá que o saúda. “Besouro preto, Besouro encarnado, joguei a macumba lá no seu reinado”. O canto louva uma entidade que nunca se prendeu à terra, por isso se transformou em Besouro e voou quando cercado pela polícia. Conforme o enredo, “Òsányìn deu-lhe a erva na medida. Xangô emprestou-lhe o oxê. Por ordenança de ‘seu’ Arranca Toco, Caboclo Araúna deu-lhe a flecha que usava como navalha. Ogum, por sua vez, forjou a armadura que guardava seu corpo”.
Enredo permeado por diferentes toques de berimbau
Há também, na pesquisa e criação de Leandro, o compromisso com a capoeira, que o faz permear o enredo por quatro toques excetuados pelos berimbaus nas rodas de vadiação, Angola, Cavalaria, Idalina e Amazonas. O primeiro toque representa um jogo rasteiro, lento e repleto de mandinga, o segundo é um aviso de que os inimigos estão chegando, o terceiro anuncia um jogo de faca ou navalha, arte cujo domínio contribuiu para a fama de Besouro, e o quarto homenageia a memória dos grandes mestres, como Manuel Henrique Pereira, vulgo Mangangá.
Os toques celebrados pelo enredo servem também para chamar a atenção que foi por meio das ladainhas e chulas cantadas nas rodas de capoeira e samba de roda do Recôncavo, além dos pontos de Juremá, que se manteve viva a memória e a lenda de Besouro.Principalmente porque até pouco tempo atrás não havia comprovação histórica da sua existência. Conforme o maior pesquisador da capoeira de todos os tempos, Frede Abreu, certa vez me disse: “Besouro deixou a lenda para entrar para história”.
Apenas no início dos anos 2000 foram descobertos documentos que confirmavam que Besouro tinha mesmo existido, o que muitos historiadores desacreditavam até vê-lo citado em processos criminais como “Manual Henrique, vulgarmente conhecido como Besouro”. Tratava-se, afinal, de um conhecido desordeiro para a polícia e justiceiro para a população de Santo Amaro, porque sempre afrontava a ordem policial e a violência e autoritarismo dos fazendeiros do Recôncavo, a maioria donos de usinas de açúcar. Besouro trabalhou na Usina Maracangalha e foi morto nos seus arredores. Talvez por esse motivo, por sua rebeldia e coragem que lhe custou a vida, mas também devido a seu “corpo de mandinga”, para usar uma expressão de Muniz Sodré, que um jovem preto de 27 anos, chamado Manuel Henrique Pereira, alcançou a condição de lenda.
De acordo com a tradição oral, descrita com rara beleza por Leandro em seu enredo, Besouro foi morto por uma cilada orquestrada por um fazendeiro, porque o capoeira havia espancado seu filho em legítima defesa. Cercado por 40 homens armados, nenhuma bala o atingiu, mas uma faca de tucum o atravessou, forjada pela única madeira capaz de quebrar o encanto do corpo fechado.
O atestado de óbito de Manuel Henrique Pereira, encontrado pelo pesquisador Gerardo Vasconcelos, não apenas confirmou a existência histórica de Besouro como o ano de sua morte, 1924. Embora o documento não explique os motivos ou a arma utilizada no crime, afirma que o jovem foi morto por um “ferimento perfuro-inciso no abdômen”.
A tradição oral ensina à história dimensões que a ciência ocidentalizada não alcança em busca de uma pretensa verdade. Para Leandro, certamente, não é isso que importa, mas sim a conexão, que Besouro proporciona e que o artista torna possível, entre corpos diaspóricos que gingam, carregam patuás e mandingas, presentes e firmes tanto em Santo Amaro da Purificação quanto no Morro da Serrinha.
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Escritor, doutor em História pela Universidade de São Paulo e professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autor, entre outros, de Carnaval-Ritual: Carlos Vergara e Cacique de Ramos.
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