Ao optar, no título do enredo da Mangueira, pelos nomes de batismo dos homenageados, o carnavalesco Leandro Vieira já apresentava sua carta de intenções para 2022. Angenor, José e Laurindo. Três artistas negros, vindos do planeta pobreza, visceralmente ligados à história da verde-e-rosa.
Cartola, Jamelão e Delegado, assim eles se tornaram conhecidos. Leandro abdica das alcunhas e nos sopra: há um homem por trás do artista. Um homem do povo.
Alguns analistas, contudo, estranharam a sinopse. “A poesia que habita a Mangueira foi inventada por um pedreiro de pele preta batizado Angenor”, frisa Leandro no texto. Por que destacar o ofício de pedreiro?, questionaram. As populações das favelas e dos subúrbios já há algum tempo afirmam esses lugares, em vez de negá-los ou apagá-los. Quem define o centro? Talvez seja a hora de fazermos o mesmo com as profissões. Um pedreiro não é menos que um sociólogo, um médico ou um engenheiro. Pois sigamos.

“Aquele que ergueu – como quem bate laje, mistura o cimento ou empilha tijolos – duradouro e permanente estado de poesia”, sublinha Leandro, referindo-se obviamente a Cartola. A alegoria é precisa. Quem constrói uma casa por vezes também faz arte.
Esse olhar para o sublime que brota do aparentemente ordinário atravessa todo o enredo. “Rosas que brotam dos escombros”, como diz a sinopse. No universo da Marquês de Sapucaí, tão pródigo em vaidades, é bonito ver um carnavalesco — artista do visual — prestar tributo aos artífices dos fundamentos de uma escola de samba: a poesia, o canto, a dança.
Angenor, ou Cartola, nasceu em 1908. Passou parte da infância em Laranjeiras e ainda menino se mudou com os pais para o Morro da Mangueira. A favela começava a despontar. Lá conheceu Carlos Cachaça, que o apresentou ao mundo da boemia e do samba. Um caminho sem volta. Ganhou o apelido com que se notabilizaria como referência ao chapéu-coco usado para se proteger do cimento, nas obras em que trabalhava de pedreiro.

Cartola foi um dos fundadores do Bloco dos Arengueiros, do qual nasceria, em 1928 a Estação Primeira. Na escola, firmou a mão de compositor, embora o primeiro disco só tenha vindo mais de quatro décadas depois, quando já tinha 66 anos. Canções como “O mundo é um moinho”, “Tive sim” e “Alvorada” são apenas algumas das pequenas maravilhas que o artista nos legou.
É ele, Angenor, o primeiro reverenciado no desfile concebido por Leandro. E não à toa o carro alegórico desse setor, que sucede o abre-alas e as fantasias introdutórias ao enredo, evoca “As rosas não falam”. Como se representasse a raiz de uma roseira cujas flores continuam a nascer.
Sim, porque ao homenagear o trio, o carnavalesco busca driblar a nostalgia. Cartola, Jamelão e Delegado não foram a Mangueira, são a Mangueira. O menino que se arrisca nos primeiros passos do samba, a baiana que gira e faz a vida girar com ela, as pastoras que, em coro, cantam os versos de Angenor numa reza pagã.

“Todo mangueirense que nasce, cresce, sobe e desce aquele morro é acompanhado por essa voz”, diz Leandro na sinopse. A voz de José.
Chamado pelo nome da fruta nativa da Índia em razão da cor retinta, Jamelão se apaixonou pela Mangueira ainda garoto, quando começou a tocar tamborim. Ainda se arriscou no cavaquinho, mas o maior talento era mesmo o de cantor. Logo passaria à função de crooner nas gafieiras da cidade.
O sucesso como intérprete dos sambas de sua escola talvez tenha turvado, em algum grau, o esplêndido trabalho fora da Avenida. Jamelão dominava como poucos a arte do samba-canção. Ainda hoje, ouvir uma música de Lupicínio Rodrigues é lembrar de sua voz.
Todos esses traços estarão contemplados no desfile da Mangueira. E, se a Ala dos Compositores introduzirá a evocação a Angenor, caberá à Velha Guarda o pede-passagem para José, assim como a menção à gafieira servirá de elo entre o canto e a dança. De José a Laurindo, um dois-tempos redondo.

Caçula do trio, Delegado é de 1921. Filho de um dançarino de valsa e de uma quituteira, foi ritmista e diretor de bateria, antes de consolidar como mestre-sala. Não um mestre-sala qualquer. Por 36 anos, ele reverenciou em diferentes avenidas a bandeira verde e rosa, seja fazendo dupla com Nininha, Neide ou Mocinha. E se orgulhava de nunca ter tirado uma nota menor que a dez.
Seu cognome, ao contrário do que se pode cogitar, não se relaciona com a polícia ou qualquer tipo aparato repressivo. Laurindo era Delegado porque tinha fama de “prender” as moças com sua lábia.
Será ele quem fechará o desfile da – essa, sim – trinca de reis. “Imaginando-a dançando e coroada, impossível não crer que todo corpo que habita a Mangueira não herda a dinastia de seu mais famoso bailarino (…) Príncipe da Ralé. Um Obá da favela bordado de paetês”, observa Leandro. Aposto que a alegoria sobre Delegado, um primor de criatividade, estará entre os destaques do carnaval. Mas não vou estragar a surpresa.

Estruturado numa tríade, como se viu, o enredo tem um quarto nome em seu subtexto. Este, ligado à visualidade. Refiro-me a Júlio Mattos, que foi carnavalesco da Mangueira em 19 desfiles (1963 a 1974, 1977 a 1979 e 1986 a 1989) e é o maior campeão pela escola. Seu trabalho, caracterizado pelo rosa e pelo verde intensos, bem contrastados, norteou a palheta cromática desenhada por Leandro, que centrou a pesquisa de imagens em revistas da época, como O Cruzeiro e Manchete. Aliás, essa premissa de tons contrapostos aparecerá também nas fantasias, marcadas por cores bem recortadas, quase sem nuances.
Em 2019, ao comentar o desfile vencedor em entrevista dada a mim e à curadora de arte Daniela Name, Leandro contou que a proposta naquele ano foi a de “um carnaval que vinha da memória”, como uma foto desbotada dentro da gaveta. “Nas fantasias, a impressão era de que aquilo que um dia foi verde-bandeira, com a passagem do tempo, virou verde Tiffany; o rosa-chiclete virou rosa-bebê”, salientou.
Pois a lembrança, agora, tem cores vivas. O passado está no presente. Com a homenagem a Angenor, José e Laurindo, a Mangueira mergulha em si mesma e saúda a herança que a compõe. Que faz, da Mangueira de ontem, uma Mangueira atemporal. Como escreveu a poeta Anne Michaels, “se alguém já não tem a terra, mas tem a memória da terra, então sempre pode fazer um mapa”.
Ouça o samba da Mangueira para o Carnaval de 2022:
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Escritor e jornalista. Autor dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, 2021), "Rua de dentro" (Record, 2020) e "Ferrugem"(Record, 2017), entre outros.
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