“Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”, título dado ao enredo do ano da Viradouro em 2022, saiu da estrofe da canção de um baile realizado pelo Clube dos Democráticos em janeiro de 1919. Traumatizada com as mortes, internações e o desaquecimento econômico provocado pela epidemia de Gripe Espanhola, em 1918, a cidade do Rio de Janeiro enxergou uma esperança em dezembro daquele ano, quando a Festa da Penha, adiada de outubro para o mês do Natal, pôde ser realizada, marcando o reencontro dos sambistas em um dos seus redutos de resistência (clique aqui para ler texto de Marcelo Moutinho sobre a Festa da Penha, presente no enredo do Salgueiro).
O baile dos Democráticos foi uma espécie de “esquenta” para um carnaval que só se iniciaria em 1o de março, mas já deu o tom para aquele que seria chamado, mediante tanta expectativa, de “o maior carnaval do século”. Ao ler a sinopse proposta pelos carnavalescos Marcus Ferreira e Tarcisio Zanon e visitar o barracão da Viradouro, descobrindo o desfile setor a setor, percebe-se que, mais do que um carnaval “pós-pandemia”, o que os artistas estão propondo é a reafirmação da folia – na rua, nos cortejos – como espelho, termômetro e condensação das expectativas da população carioca. Não é uma afirmação trivial, sobretudo depois de um momento em que a epidemia de Covid-19 deixou em carne viva as contradições que deixaram em situação precária a maioria absoluta dos trabalhadores da gigantesca cadeia produtiva que constrói o carnaval.

Quando a Viradouro entrar no Sambódromo, na madrugada de 23 de abril, o que o público verá uma apresentação apoiada na metalinguagem, por ser um desfile feito de desfiles. Marcus e Tarcísio pensaram a ordenação de alegorias e alas com um raciocínio temporal, que vai do pré-carnaval à Quarta Feira de Cinzas. Apesar de a pandemia ter sido uma tragédia ainda maior que a de 1918, o cortejo do presente, assim como aqueles que aconteceram depois da Gripe Espanhola, procuram fazer do riso a vitória sobre a dor. Na concepção de fantasias e alegorias, os carnavalescos recuperam as apropriações feitas pela população do inicio do século XX, entre elas as alegorias que se referiam ao “Chá da Meia-Noite” – uma beberagem que, reza a lenda, teria sido ministrada na Santa Casa de Misericórdia aos pacientes em estado terminal, de modo a acelerar sua passagem para outra dimensão e liberar o leito para alguém que poderia ser curado. Também como no “maior carnaval do século”, o bonde que servia para carregar os corpos para o necrotério será carnavalizado, afirmando a folia como uma possibilidade de subversão e de entendimento da própria dor. Quando carnavalizamos um episódio como o “Chá da meia-noite” ou um político corrupto, estamos olhando de novo para aquilo e, liberados pelo humor e pela festa – esta, o grande pilar de reintegração social do Brasil -, podemos repensar a circunstância sob nova perspectiva.
De acordo com o livro “De sonho e de desgraça: o carnaval carioca de 1919”, do jornalista David Butter, recém lançado pela Mórula Editorial e uma das bases referenciais para a construção do enredo da Viradouro, o pré-carnaval de 1919 aconteceu “a todo vapor” com seus bailes, banhos de mar a fantasia, batalhas de confetes, festas e “zum-zum-zuns” sobre o que viriam a ser os préstitos das três grandes sociedades. Também foi grande o reaquecimento da economia carnavalesca, como aluguel de sacadas na Avenida Rio Branco para assistir à volta das sociedades e ranchos à rua, o aluguel de carros e contratação de choferes para o desfile carnavalesco de carros chamado corso, e não menos a alta procura por fantasias e artigos carnavalescos que dariam aos brincantes corpo à folia retida.
Estilos de Marcus e Tarcísio estão mais nítidos
Não foi apenas o carnaval pós-gripe. Foi o ano do primeiro desfile do Cordão do Bola Preta, o momento de invenção da caipirinha, criada com a mistura de cachaça no xarope ministrado aos enfermos, e também aquele em que os blocos da região em torno do Estácio e da Cidade Nova, ligados à população pobre e negra, resolveram sair às ruas, na segunda-feira, mesmo sem ter autorização para isso. Aqui vale um parêntese sobre a concepção plástica do desfile. Se no enredo de 2020, primeiro da dupla Marcus e Tarcisio, ficou ainda difícil discernir as contribuições de cada artista ao desfile, agora ficam bastante nítidas as linguagens de cada um nas fantasias e alegorias. Marcus contribui com uma linguagem lúdica, o uso de tons flúor e a assinatura de fantasias como a do “Chá da Meia Noite” e a da caipirinha, aprofundando um estilo que foi visto no desfile campeão do Acesso pelo Império Serrano, sobre Manoel de Barros, em 2017. Já Tarcísio está presente em momentos com o da alegoria da cura, onde aparece o orixá Omolu e fantasias de composição que, além de pipoca de verdade, são marcadas pelo uso de materiais como juta, barba de bote e palha. Também foram mais pensados por Tarcísio as fantasias dos blocos negros da Praça Onze, em tons terrosos.
De volta ao calendário dos cortejos de 1919, no desfile da Viradouro o período do luto é emulado por uma grande ala monocromática, com 12 fantasias diferentes usando apenas preto. O casal de mestre-sala e porta-bandeira, também vem em preto e prata, representando a passagem da noite para o dia, com um abre-alas quase translúcido, em estilo Art Nouveau, se comportando como uma espécie de “tela” onde são projetadas cores distintas. Depois da treva, uma explosão de cor num prisma de luzes coloridas.

Em 1919, o dia 1º de março, abertura do carnaval, marcou ainda o aniversário da cidade. As ruas do Rio no sábado foram vivamente ocupadas, “como se as casas devessem, por uma terrível contingência, ser abandonadas, deixadas desertas” (Jornal do Brasil, 02/03/1919). Como escreveu Butter sobre o carnaval que acontecia no Centro da cidade, “quando o corso passava, os grupos que desfilavam a pé, sem carros alegóricos, tinham de se espremer pelo que sobrava de espaço junto às calçadas e ao canteiro central. Nesse encontro, de assimetria não apenas espacial, a avenida se tornava no sábado um mosaico de diferentes carnavais, de diferentes raízes, todos entrecruzados na mesma vida”.
Já no domingo, a cidade sofreu o impacto dos desfiles dos ranchos e das sociedades ascendentes com suas alegorias e performances rememorando as dificuldades e desafios da Gripe Espanhola. Na Avenida Rio Branco, por exemplo, o clube Zuavos, com menos integrantes e bem mais modesto que as Grandes Sociedades, apresentou um grande bule com as inscrições “Chá da Meia-noite” e “Morre, diabo”, fazendo referência aos tais boatos sobre a “aceleração” de morte promovida pela Santa Casa. Outro exemplo foi em Santa Cruz, bairro da Zona Oeste da cidade, em que Butter diz que “duas das três sociedades carnavalescas que desfilaram à noite com alegorias que lembravam da Gripe”.
A segunda-feira, que nos anos anteriores costumava ser um dia mais tranquilo e de passagem, em 1919 foi acometida pela excepcionalidade do momento e, além dos blocos negros da Praça Onze, houve muita agitação em toda a cidade. Nada superou a terça-feira gorda e os desfiles das Grandes Sociedades, na Avenida Rio Branco. Segundo Butter, “64 anos depois do desfile pioneiro do congresso das sumidades carnavalescas, os préstitos das grandes sociedades ainda representavam o ponto alto do carnaval oficial do Rio de Janeiro”. Terça-feira era o dia das cadeiras nas calçadas, das marmitas em família, das locações das sacadas e janelas dos prédios. Todo movimento na cidade para assistir às três grandes agremiações: Tenentes do Diabo, Clube dos Democráticos e Clube dos Fenianos, todas lembradas no desfile da Viradouro.
Mesmo que nesta época as Grandes Sociedades já não ocupavam o mesmo lugar de prestígio que tinham garantido nas décadas anteriores, em função da disputa com outras manifestações populares carnavalescas, o carnaval de 1919 foi especial também para elas quando decidiram abordar os grandes temas do momento, ou parafraseando Butter: “as grandes sociedades riram da morte – como só os encurralados podem fazer”. Após percorrer pelas muitas ruas do centro do Rio, as agremiações encerraram suas folias em suas sedes, que explodiam em bailes de fantasia madrugada adentro.
No desfile da vermelho-e-branco de Niterói, as Cinzas estão presentes, com a barca saindo do outro lado da Baía e trazendo para o Rio as sociedades niteroienses, que vieram para o Rio aproveitar o apagar das luzes do “maior carnaval do século”. No samba-enredo da Viradouro, a carta de Pierrô declarando seu amor pelo carnaval foi assinada na quarta-feira, 5 de março de 1919, mesmo dia em que os jornais e foliões fizeram o balanço dos últimos quatro dias e chegaram à mesma conclusão: o carnaval de 1919 entrou para a história. Na madrugada do dia 23, a carta encerra o desfile, como uma comissão que não é de frente e sim de fundos. Ela e o “beijaço” de 19, retratado por cartunistas de J. Carlos, são estratégias para tocar a plateia.

