Alegorias grandiosas, fantasias bem acabadas, narrativa de fácil leitura e grande poder de comunicação com o público . Essas marcas da dupla de carnavalescos Márcia e Renato Lage se fizeram presentes ao longo de todo o desfile da Portela. O enredo “Igi Osé Baobá” foi uma das muitas propostas que se debruçaram sobre as narrativas da diáspora africana e a constituição de um legado negro de saber e de cultura no Brasil. E a azul e branca fez isso a partir do baobá, árvore sagrada para várias nações do continente-mãe.
Parceiros de trabalho e de vida há mais de 30 anos, Márcia e Renato de fato atuam como dupla na concepção plástica de uma escola. Se o diálogo bem-sucedido fica claro na coerência de um vocabulário visual permeando todos os setores do cortejo, por outro é preciso louvar as características proeminentes de cada um dos artistas nessa sinergia. Está mais sob a responsabilidade de Márcia a concepção e execução das fantasias, o diálogo e a estruturação da equipe de pesquisa e o pensamento geral sobre o cromatismo da escola; vêm de Renato a reestruturação das formas, o raciocínio tridimensional e o poder de síntese que fazem do artista um dos maiores criadores de alegoria da história dos desfiles – provavelmente o maior.
Tanto as cores quanto as bases formais e narrativas da Portela neste ano parecem ter saído de dois núcleos irradiadores: o primeiro, a ideia de enraizamento e origem contida no baobá; o outro, o matriarcado velho de Nanã, divindade ligada à origem do ser humano e à sua gênese – por isso associada à terra barrenta, alagada. O fato dessa iabá ser a caracterização justamente das baianas, guardiãs da ancestralidade de uma escola de samba, reforça essa teia conceitual. Não parece acaso, por tudo isso, que os marrons terrosos tenham pontuado todo o desfile da Portela: cores do solo sagrado que alimenta o baobá, cores do barro criador de Nanã.
Márcia e Renato nunca deixam de pensar a cor como um elemento crucial na narrativa de um desfile. Em 2020, sabiam que a Portela desfilaria no lusco-fusco dos primeiros raios da manhã. Optaram então por desenvolver a paleta do enredo “Terra sem males” apoiada no forte contraste do azul da Portela (em variações como turquesa, celeste, pavão e ultramarino) com o calor solar de amarelos, laranjas e telhas. A alegoria sobre o dia e a noite, uma das mais belas a cruzar a avenida, dentre todos os desfiles daquele ano, é bom exemplo disso (lembre clicando aqui). O uso de gamas de tons opostos-complementares – que naturalmente fazem a percepção visual “tremular”, “vibrar” – criou a sensação de que a avenida estava “acendendo”, isso é, de fato “amanhecendo”. Uma manhã que era factual, a da madrugada da Sapucaí, e também conceitual/ficcional, criada a partir do enredo proposto, sobre os povos originários do “Rio antes do Rio” (Relicário) – titulo do livro Rafael Freitas da Silva que inspirou a narrativa. Em última instância, um enredo sobre o alvorecer do povo carioca.
É muito bonito ver os grandes artistas do carnaval transpondo para suas escolhas plásticas as características conceituais de um enredo. Isso poderia ser um processo óbvio – o discurso, a imagem, o som e o movimento de corpo que constituem um desfile estarem integrados -, mas nem sempre é. Neste 2022, vimos Leonardo Bora e Gabriel Haddad modulando com maestria um universo inteiro de vermelhos para Exu com o preto do orixá, mas também com amarelos, laranjas e rosas- nos momentos de “estouro” do desfile -, e azuis, violetas e roxos, quando era necessário produzir pausa e “resfriamento” para o olhar. Vimos ainda Jack Vasconcelos criar uma paleta furta-cor, lisérgica, fabulosa e lúdica para brindar os erês da Tijuca. Por fim, tivemos Leandro Vieira louvando o legado da Mangueira memorial e popular irradiada por Cartola, Jamelão e Delegado, tingindo a escola com seu orgulho verde e rosa (leia resenha do desfile aqui).

Márcia e Renato distribuíram punhados de terra ao longo de todo o desfile da Portela, lembrando o baobá, na justificativa de enredo tratado como “árvore-mãe”, como uma espécie de oásis, de lembrança da fertilidade da vida em meio à aridez da paisagem de certas regiões africanas. No trabalho de cor dos artistas, em alguns momentos a terra foi lama, dando um ar “molhado” à ponta das penas sintéticas das fantasias e as beiras de esculturas e adornos; em outros, foi o solo seco da savana ou o piso bronzeado dos solos pedregosos, de onde saíram os tons do Xangô na segunda alegoria e os detalhes da fantasia da bateria. Se, em 2020, as cores escolhidas fizeram a Portela “amanhecer”, este ano os marrons e areias deram à escola quase centenária o dom de “envelhecer”, encarnando o baobá, recebendo Nanã e oferecendo-se à avenida como o colo das avós, como o abraço ancestral. A presença de Tia Surica e outros baluartes portelenses no imponente abre-alas, que se referia à África como “berço do mundo”, reforça essa ideia.

O primeiro segmento do desfile, propositalmente dominado pelos azuis e pelo branco, foi sucedido por alas de orixás que seguiram a ordem do Xirê, a dança evocatória dos orixás, respeitando suas cores: o branco em Oxalá, o palha em Omulu (o mais incrível processo iconográfico do orixá que passou pelo Sambódromo em 2022) e o amarelo com dourado de Oxum (a saia vazada, criada apenas com a estrutura em vime encapado com tecido, é trabalho esmerado).
As alegorias da escola têm outros pontos altos do desfile, mas também os momentos infelizes na apresentação. Na observação do abre-alas monumental, vemos o desenho sintético que é marca de Renato desde o início da carreira (Leia texto de Daniela Name sobre o assunto clicando aqui), mas que seguiu sendo aprimorada depois da parceria com Márcia. A vista do carro das arquibancadas demonstra como nada é gratuito: a não ser pelo gradil nos dois pontos frontais, medida de segurança para que os baluartes da escola pudessem descansar em cadeiras brancas,e dois outros gradis nos pontos mais altos da alegoria, todos os “queijos” estão integrados ao desenho. Nada do que é funcional é um apêndice: há uma organicidade entre os postos para os componentes com as cabeças das esculturas e colunas, de modo a criar a ilusão de que os corpos fazem parte da concepção escultórica, ou de que a alegoria é uma moradia possível para os corpos de quem desfila.

Na belíssima alegoria da savana, a mais extraordinária do desfile, o desenho orgânico de Renato e Márcia se repete com maestria. Tudo é cíclico e redondo na savana da Portela, da partir do globo – marca registrada de Renato desde “Chuê chuá” e signo reincidente em vários desfiles (“Criador e criatura”, “Gaia”), que parece comentar, de forma metalinguística, a própria gênese de uma obra de arte. Os adornos em palha que contornam todo o carro, como “volutas africanas”, reforçam a ideia de ciclo e movimentam todo o chassis, com os componentes mimetizados à estrutura como se fizessem parte do projeto alegórico – e fazem. Aí a hierarquia da paleta que norteia o desfile se inverte: em vez da terra pontuando o azul e branco, vemos as cores da Portela usadas para criar contraste e pontos focais na estrutura, fundos e/ou contornos que auxiliam na visualização dos elementos escultórios. É nesse carro em que percebemos um toque de gênio, e o modo como toda a iconografia do desfile foi, literalmente, trançada. A palha do ibiri, ferramenta de Nanã que aparecia nas mãos das baianas no início do cortejo, parece conferir sua textura à pele dos animais da savana, como elefantes, leões, girafas e hienas.

Mesmo que a Teia Crítica não leve em conta os problemas técnicos enfrentados pelas escolas, e sim uma perspectiva de análise estética, independente de erros e acertos, fica difícil não lamentar a imprecisão de cálculo que acabou fazendo com que o globo do carro da savana desfilasse quebrado. Há um necessário trabalho de perícia a ser feito pelas equipes dos barracões. Mas o maior problema do conjunto alegórico não foi formal, e sim conceitual. Um carro representando um navio tumbeiro desfilou com negros acorrentados, representando os escravizados jogados ao mar ou aqueles que, em desespero, se atiravam às águas de “Kalunga grande” para não perder definitivamente a liberdade. Duas fantasias também exibiam correntes, ainda que soltas, sem estarem prendendo os corpos.
Outras escolas, como a Beija-Flor (leia análise crítica do desfile aqui) e a Vila Isabel cometeram deslizes análogos. Não é mais tolerável, no século XXI, que uma expressão artística tão revolucionária quanto o carnaval gere imagens que perpetuem o martírio e a condição subalterna dos ancestrais das pessoas negras. É certo que nenhuma das três escolas fizeram isso intencionalmente, mas segue sendo grave. É mais certo ainda que artistas com o imenso talento Renato e Márcia Lage reagirão a este episódio repensando suas futuras criações.
Em breve mais Portela – “Fala, Mestre!” com Nilo Sergio

A Portela em 2022 foi marcada pelo bom canto dos componentes, sustentado pelo ótimo desempenho da bateria de mestre Nilo Sérgio. Ele orquestrou um andamento que permitia a compreensão da letra e ressaltava a melodia do samba – vale destacar sobretudo o refrão do meio, iniciado com os versos “Obatalá Colofé”. Em um projeto-piloto da Teia Crítica, Nilo Sergio deu longo depoimento à equipe da Caju, que será publicado ainda na edição 2022 de nosso projeto curatorial. Instrumentista precoce, cria do Império Serrano e das rodas de samba de Madureira, Nilo explica como fez a “cozinha” do samba portelense, acrescentando batidas de cumba e uma adaptação “desfilável” do ijexá para Oxalá.
Na pele dos instrumentos da bateria, o retrato de Monarco, transformado em baobá da escola no último carro concebido por Renato e Márcia Lage.
A seção “Fala, Mestre!” da Teia Crítica é o que o título sugere: depois de longas entrevistas, vamos dar voz aos mestres das baterias das escolas de samba, para que eles nos contem um pouco de sua trajetória e nos ensinem sobre o processo de “desenho” ritmico de um samba, a partir das sugestões melódicas e de letra, além do próprio enredo do ano.
Foto do cabeçalho: Alexandre Gomes/ Revista Caju
Autores
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Escritor e jornalista. Autor dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, 2021), "Rua de dentro" (Record, 2020) e "Ferrugem"(Record, 2017), entre outros.
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