Campeã da Série Ouro em 2023, a Porto da Pedra fez um desfile que ecoou a voz do canto do indigenista Bruno Pereira, assassinado ao lado do jornalista britânico Dom Phillips: “Warrãna-rarae, Warrãna-rarae, Mari-nawa-kenadêe”, diziam os versos do refrão do samba, um dos propulsores da passagem da escola de São Gonçalo pela Sapucaí. Com uma preocupação com o meio ambiente que começou antes do desfile, que contou com enredo de Mauro Quintaes, de volta ao carnaval do Rio depois de longa temporada nos desfiles de São Paulo. A proposta mergulhou no imaginário da Amazônia, a partir da literatura do escritor francês Júlio Verne, e a agremiação, além de apresentar a floresta e seus habitantes com extrema criatividade e apuro visual, trouxe à tona o debate sobre preservação e conservação ambiental para o público.

Assim que definiu o enredo, a escola também assumiu um compromisso ético e político com ele. A redução do uso de penas reais nas fantasias e a compensação da emissão de CO2 – das atividades durante a preparação para o carnaval – fizeram parte desse compromisso com uma postura mais sustentável. Antes dos desfiles, integrantes da Porto da Pedra participaram de mutirão para plantar mudas de espécies da Mata Atlântica numa área de preservação ambiental em São Gonçalo.
Dom Philips e Bruno Pereira foram mortos no Vale do Javari, no Acre, segunda maior terra indígena do Brasil, em junho de 2022. A motivação do crime foi a denúncia que a dupla fazia de atividades ilícitas no território da reserva, especialmente a pesca ilegal. Além de homenageá-los, a Porto da Pedra lembrou outros ativistas assassinados na luta pela preservação da Amazônia, caso da missionária católica Dorothy Stang e do seringueiro Chico Mendes. A filha do ambientalista e lideranças indígenas desfilaram na última alegoria.
“A ideiaer era tocar o dedo na ferida das culturas indígenas brasileiras”, afirmou Mauro Quintaes um pouco antes de entrar na avenida, que ele percorreu aos pulos, visivelmente emocionado.
Projeto artístico primoroso*
Apesar do tom de denúncia, o desfile não passou pela Sapucaí pesaroso. O canto de resistência do samba encontrou força na empolgação dos componentes e a passagem vibrante da escola, sem grandes sustos de evolução e harmonia, teve no projeto artístico de Quintaes um grande aliado para conquistar o campeonato. Os seres fantásticos imaginados por Julio Verne deram um tom lúdico ao desfile, com fantasias mostrando cabeças feitas apenas com um olho e o encantamento de bichos e plantas, enquanto alegorias lembraram deuses da floresta e diversas etnias indígenas.

Dois grandes trunfos plásticos foram o uso de monocromia e de linhas pretas, vinhas do grafismo indígena, nas fantasias. O primeiro segmento da escola, com comissão de frente, a 1a ala (“Viajantes literários”, com tentáculos de polvo nas costas) e a ala das baianas tingidas em vermelho vivo. A marcação dessas fantasias de uma única cor com o grafismo em preto destacou a escrita ancestral dos povos originários da Amazônia, mas também fez com que os componentes da Porto da Pedra tivessem seus corpos marcados e destacados pelas linhas, como se eles também fossem um desenho.
Por fim, é digno de nota o excelente trabalho de cor que a dupla de carnavalescos fez entre as alas, muitas vezes aproximando tons opostos, como verde e vermelho, e azul e amarelo. A proximidade entre tons complementares na escala de cor cria uma espécie de vibração nos olhos, ampliada pelo movimento dos componentes. Então muitas vezes tinha-se a sensação de que o desfile da Porto da Pedra era feito de uma dupla dança – a dos desfilantes e a da fantasias que eles vestiam.

*Este texto é publicado na Revista Caju a partir de uma cobertura colaborativa com o Colabora. Daniela Name, editora da Caju, colaborou com Ana Carolina Aguiar na análise plástica do desfile da Porto da Pedra.
Todas as fotos são de Gabriel Santos/Riotur
Autor
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Jornalista, comunicadora antirracista, moradora da Baixada Fluminense e apaixonada por ouvir e contar histórias. Seja por meio da fotografia, audiovisual ou escrita. Foi estagiária da assessoria de comunicação do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro e colaboradora do portal Notícia Preta.
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Jornalista, comunicadora antirracista, moradora da Baixada Fluminense e apaixonada por ouvir e contar histórias. Seja por meio da fotografia, audiovisual ou escrita. Foi estagiária da assessoria de comunicação do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro e colaboradora do portal Notícia Preta.

