(Depois do desfile da Tuiuti em 2022)
A volta de Paulo Barros para o Paraíso do Tuiuti, escola de samba que ajudou a projetá-lo como artista do carnaval, prometia um bonito reencontro, que acabou não se concretizando. Passados alguns dias dos desfiles, fica a sensação de que o que vimos, mais uma vez, não foi uma criação daquele Paulo Barros que revolucionou os quesitos plásticos do cortejo, tão importante na história recente do carnaval carioca, e sim de uma outra versão do artista, que não explora o máximo de sua potência. A escrita deste texto é motivada, principalmente, pelo desejo que tínhamos de reencontrar a obra de Paulo na plenitude de seu talento.
Antes de tudo, falemos da promessa não cumprida.
No desfile de 2022, o Tuiuti tinha consigo um criador que já é história – não se discute o legado que ele já nos proporcionou. Por sua vez, o carnavalesco revia a escola onde realizou, ainda na antiga Série A, suas primeiras ousadias, que o fortaleceram para os voos mais radicais realizados nos anos seguintes, na Unidos da Tijuca.
Antes da passagem da escola de São Cristóvão na avenida, nós (o autor e a autora deste texto) sentíamos saudade desse Paulo Barros transgressor, que colaborou de maneira decisiva para o entendimento do corpo que canta e dança como uma alegoria em movimento. Queríamos reencontrar com seu talento para experimentar materiais, formas e soluções cênicas, e que, nos últimos anos, pareceu um pastiche dele mesmo. Esse Paulo um tanto esvaziado de vigor tem ocupado o lugar do Paulo de quem sentimos tanta falta nos últimos desfiles que o artista assinou. Tanto naqueles marcados pela exuberância visual e êxito com o júri (o 2o lugar com a Viradouro em 2019, por exemplo) quanto naqueles de maus resultados (o 9o e o 11o lugares com Unidos da Tijuca e Gaviões da Fiel, respectivamente, em 2020).
Ao ouvir as primeiras notas do samba criado por Moacyr Luz e parceiros para o enredo “Ka Riba Ti Yê – Que nossos caminhos se abram”, ainda torcíamos para rever o artista que nos ensinou que a cultura pop e de entretenimento também pode ser incorporada ao carnaval, já que a memória das imagens não tem passaporte, fronteira e nem hierarquia. Se os desfiles são o território da afirmação e da reivindicação da diversidade, eleger alguém como a cantora Beyoncé como ícone – e uma encarnação possível para o orixá Oxum – não é um pecado. Paulo fez esse tipo de associação em todo o desenvolvimento do enredo, buscando ainda ligar personalidades como Mandela e Obama a outros deuses da mitologia iorubá. Não diferiu em nada, além das escolhas, da metodologia empregada pela equipe da Beija-Flor no enredo “Empretecer o pensamento” (Aleijadinho mesclado a Xangô e os Irmãos Rebouças como Oxumaré, entre outras).

Imagens precisam engravidar das histórias
Fazer de Beyoncé algo carnavalizável é uma das formas possíveis de conexão com o contemporâneo. Com a comunicação globalizada, artistas e celebridades como a cantora ultrapassam os limites de território e idioma para se tornarem espelhos para crianças e jovens negros de diferentes periferias ao redor do mundo. Beyoncé também produz e repensa imagens com sua atuação, levando a discussão sobre o que é representar, o que é representado, o que é representável e o que é representativo para além dos círculos universitários e acadêmicos. Reconhecer essa possibilidade é considerar que aqueles que estão nas bordas econômicas e dos círculos de saber também são consumidores, pensadores e irradiadores de imagem. Entender o poder de comunicação de ícones como Obama, Mandela ou o ator Chadwick Boseman, de “Pantera Negra”, com o público brasileiro é algo que vai na mesma direção, e traz ainda um despudor que os chamados comentaristas de carnaval poderiam avaliar sob um olhar mais generoso – o da diversidade. Nem todo artista precisa eleger Dandara ou Zumbi como pontos de partida para despertar a memória do público no que diz respeito aos legados de uma identidade negra. É legítimo desejar outras imagens; é procedente identificar que o público as reconhece.
Mas uma imagem só se torna de fato poderosa, saindo dos estados iniciais de latência e potência para se tornar força transformadora, quando circula abrigando em seu ventre intenções e conteúdo. Uma imagem precisa engravidar de boas histórias. No processo de desenvolvimento do enredo para a Tuiuti, Paulo chegou a dar uma entrevista dizendo que estava “surfando na onda” das discussões de identidade racial. A declaração, muito infeliz, seria facilmente esquecida se o desfile da Tuiuti se revelasse uma onda bem surfada, com “tubos” e manobras que fossem além da captura e do desmembramento de um assunto dominante nas redes sociais. Um tema que merece, além de atenção, respostas artísticas à altura de sua importância. Estas réplicas bem dadas precisam se distanciar tanto do manifesto, puro e simples (arte é ficção, não é literalidade), quanto da superficialidade de uma prancha a deslizar na “onda”.
O trabalho apresentado para a Tuiuti não conseguiu ir além de um surfe não aderente, e as imagens que passaram pela avenida foram tão pouco desenvolvidas que não conseguiram sequer gerar o entusiasmo pela surpresa, um dos efeitos comunicativos que o trabalho do artista sempre alcançou.
Aqui poderíamos percorrer o mal-sucedido desfile, mas preferimos, antes, puxar um pouco pela memória.
Tempo real, espaço virtual: artista-símbolo de novas percepções
No ano de 2004, Paulo ocupou um lugar de inovação nos cortejos das escolas de samba para o século XXI, alçando a Unidos da Tijuca em um inesperado vice-campeonato e sendo aplaudido, pelo grande público e pela crítica especializada, por seu carnaval que misturava arte e ciência através de alegorias inovadoras e fantasias de fácil leitura.
Nos clichês repetidos à exaustão pelo chamado “mundo do carnaval”, comumente ouvimos a definição de que o desfile das escolas de samba é “o maior espetáculo audiovisual do planeta”, mas parece que foi o artista quem efetivamente decidiu assumir em plenitude a afinidade com uma comunicação instantânea, além de uma linguagem afinada com os dispositivos móveis, que tornam o compartilhamento de imagens uma extensão do próprio corpo, e com a internet. Sua consagração como artista se dá no mesmo contexto histórico da expansão desses adventos tecnológicos, que mudaram nossa forma de perceber o mundo e tornaram acessíveis as noções de tempo real e espaço virtual, além de investirem todos os cidadãos portadores de um celular da capacidade de gerar e difundir imagens, de popularizá-las nas redes sociais. Era o início da sedimentação do momento que ainda atravessamos, o das hiperimagens e da super aceleração perceptiva. Ele é, também, o tempo e o lugar da imagem (quase) nenhuma, já que dificilmente guardamos uma dentre as milhares de imagens que vemos todos os dias.

Paulo não apenas se conectou com essas novas formas de percepção como foi o artista que se tornou símbolo e síntese de uma era de opulência, enredos patrocinados e certa euforia econômica, o que colaborou para que o gigantismo e certa instantaneidade do espetáculo (também própria da internet e da chamada “memesfera”) se tornasse predominante em relação ao processo discursivo abarcado pelo enredo. Não por acaso, tem sido uma característica perene em sua trajetória o predomínio de desfiles que mais buscam descrever temáticas do que narrar histórias, o que pode ser uma consequência dessa escolha por uma abordagem mais “visual” do que “escrita”, muito representativa de nossos tempos.
O carnavalesco trouxe para dentro de seu trabalho artístico os domínios de uma linguagem audiovisual imersiva, pensando, inclusive, em questões diretamente ligadas ao espectador, como a disposição dos elementos em uma alegoria em relação a um público que a vê de lado, a partir das arquibancadas. A assunção forte de uma linguagem audiovisual fez ainda com que o artista fosse buscar diálogos intensos com outras manifestações do campo, tais como o cinema, a televisão e os videoclipes.
Se, em 2004, na Unidos da Tijuca, Paulo aparece para o grande público como aquele que seria o nome do carnaval dos anos 2000, foi em 2003 que esse projeto de transformação na linguagem dos desfiles se iniciou. No desfile da Tuiuti desse ano, o diálogo se deu não com produtos audiovisuais, mas sim com as artes visuais, já que o artista reassumia a escola, no então Grupo A, após alguns anos de trabalho no Grupo B. Sua missão: desenvolver um enredo sobre Candido Portinari, cujo centenário de nascimento se completaria no fim de 2003. Para isso, abriu mão de construir uma narrativa sobre a vida e sobre a obra do artista e optou por buscar dar vida a suas obras e a seu processo de pintura, o que foi reforçado por um samba em primeira pessoa. Seguindo o enredo construído, a letra descreve justamente as temáticas abordadas pelo pintor em seus quadros.
No desfile sobre Portinari, uma nova linguagem
A grande atração da Tijuca em 2004 foi a alegoria que ficou conhecida como “o carro do DNA” (com 127 homens e mulheres pintados de azul, dispostos em forma de pirâmide em uma estrutura de ferro que inauguraria a era das alegorias humanas). No ano anterior, o destaque ficou para o abre-alas que, tradicionalmente, traz a coroa da Tuiuti. O diferencial, em 2003, foi o fato de essa coroa e o restante da alegoria virem formados por cerca de 7.500 latas de tinta Suvinil, inclusive com rótulo exposto, já que o regulamento permitia a exibição de marcas em carros e fantasias. Trata-se de uma das alegorias mais emblemáticas de sua trajetória, não apenas por representar a tinta – matéria-prima de Portinari -, mas também por transformar em alegoria o material usado para a construção do próprio carnaval da escola.
Com uma iluminação muito bem feita e com uma bela disposição das latas e de suas tampas, o carro fez muito sucesso com o público e com alguns comentaristas da época, mas também dividiu opiniões. Na transmissão da CNT, por exemplo, que exibia os desfiles do grupo de acesso naquele tempo, enquanto os carnavalescos Max Lopes e Milton Cunha e a artista Elke Maravilha exaltavam a criatividade e o acabamento da alegoria, o jornalista Miro Ribeiro perguntava, em uma leitura mais literal (e mais tradicional) do que via: “Eu só quero saber se Portinari pintava com Suvinil”.
Podemos ver nesse carnaval da Tuiuti de 2003 – e é uma pena que a qualidade da gravação da CNT não seja das melhores -, como Paulo opta por trazer sequências de imagens de destaque e como seus carnavais são pensados para isso. O desfile começa já com a Comissão de Frente vestida com saias de pincéis que rodavam (algo incrivelmente inovador para a época), seguida pela velha guarda vestida de casamento caipira ainda antes do abre-alas. Os mesmos pincéis da comissão de frente vieram ainda na saia da porta-bandeira, e as demais fantasias da escola buscavam representar personagens e ambientes presentes nas obras de maior destaque do pintor. Eram todas de fácil leitura, mesmo para quem desconhecesse os quadros de Portinari.
Alegoria humana e reconstrução 3D já em 2003
Cabe lembrar que, em 2003, ainda vivíamos um tempo em que as pessoas, de modo geral, reclamavam muito por não conseguirem entender o que queriam dizer as fantasias apresentadas pelas escolas sem que um manual ou sem que os narradores da transmissão traduzissem as imagens em palavras que pudessem compor um sentido para o que se via. Vem daí as diversas piadas sobre os delírios dos carnavalescos ao criarem e nomearem suas fantasias. Nesse sentido, se hoje temos cada vez mais o predomínio de fantasias mais teatrais, podemos pensar que isso muito se deve a essa abordagem construída pelo artista, que, nesse momento, ainda pensava que seu carnaval deveria atender ao público que o assistia.
Além do abre-alas, as outras alegorias da escola também se destacaram bastante. Todos, de algum modo, se construíram como experimentos para o que o carnavalesco viria a exacerbar nos anos seguintes, no Grupo Especial. O princípio de uma alegoria humana, por exemplo, apareceu no carro do milharal, em que pessoas vestidas de espantalhos se movimentavam dentro de uma coreografia completamente integrada aos demais elementos do carro, gerando uma confusão momentânea sobre se, de fato, eram pessoas ou não que estavam ali. O oposto também aconteceu: um dos tripés trazia apenas esculturas que reproduziam os homens negros carregadores de café pintados por Portinari, sem qualquer presença humana, e a remontagem tridimensional da pintura causou muito impacto.
Radicalização do processo cênico iniciado por Joãosinho
Feita essa genealogia, precisamos reiterar a importância do artista no entendimento cênico e metalinguístico do desfile, e na adesão definitiva da alegoria a um processo de teatralização que tem em Joãosinho Trinta um pioneiro, mas no próprio Paulo aquele que estabelece e radicaliza um novo paradigma de movimento e de corpo como escultura e alegoria nos desfiles.
Era este Paulo, o inovador, que gostaríamos de ter reencontrado na Tuiuti de 2022. Mas o que vimos foi uma sombra daquilo que ele e ainda pode um dia nos oferecer. A primazia de uma visualidade desprovida de narrativa, marcante desde o inicio da trajetória do artista, parece ter chegado a um esgarçamento agudo, a um ponto de desgaste. Ele já vinha sendo percebido desde o campeonato da Unidos da Tijuca em 2014 (“Acelera, Tijuca!”), exatos 10 anos depois da alegoria viva do DNA, e foi se agravando nos últimos anos.

Se pensarmos na grande explosão que foi o desfile da campeã Grande Rio e no festival de experimentações visuais construídas pelos artistas Leonardo Bora e Gabriel Haddad, tanto em alegorias como em fantasias, não há como não fazer um contraponto com o que apresentou a Tuiuti. E este contraste nasce justamente das histórias cruzadas de Paulo e da agremiação. O desfile de 2003 e os de alguns anos posteriores (em especial, os dos carnavais assinados por Jack Vasconcelos) mostram a afeição da Tuiuti pela inovação conceitual e, portanto, para como o cortejo de 2022 poderia ter sido potencialmente diferente.
Em 2022, afrofuturismo cedeu lugar a abordagem confusa
Partíamos da expectativa de um criador afinado com a cultura contemporânea mergulhando no afrofuturismo. Mas o que vimos foi um desfile que não ultrapassou a superfície, tanto no que diz respeito às relações entre imagem e conceito quanto nas postas em possíveis efeitos efeitos tecnológicos. Nem o abre-alas com rampa para um sobe-e-desce de 260 componentes e nem o o carro dedicado a Wakanda, terra mítica do filme “Pantera Negra”, chegaram a mobilizar o público de modo contundente, e pareceram cópias mais tímidas de efeitos que, se causaram algum impacto no passado, hoje demonstram ser apenas o que são: efeitos, sem conexões profundas com algo que está sendo narrado ao público.

O que Paulo buscou construir de experimentação foi o formato de apresentação das alas. Elas invariavelmente vinham com o personagem “homenageado” ao centro, e ele era cercado pelos componentes vestidos como o orixá correspondente. Em volta dos orixás, uma terceira fantasia, que se repetia em todos os setores, variando apenas a cor, representando algo como guardiões daquele segmento, com leques de plumas em cores contrastantes com as da ala. Além de atrapalhar a visão de quem estava nas frisas e camarotes, esse “perímetro” de guardiões colaborou para que o desfile se tornasse visualmente cansativo. Da arquibancada, a fruição também se tornou complexa, já que não víamos o tapete de cores e formas que se espera de uma sequência de alas. E o mais grave nisso tudo é que a prometida fusão entre celebridades negras e divindades iorubás não foi de fato realizada, já que Beyoncé e Oxum, para retomarmos nosso primeiro exemplo, foram apresentadas totalmente estanques.
(Cabe dizer que esta configuração espacial é bastante parecida com o que Paulo construiu na Tijuca no carnaval de 2020, no desfile sobre a história da arquitetura, ao inserir miniaturas no meio das alas . Já não havia dado certo, pela mesma junção de monotonia com falta de clareza narrativa, acarretando ainda problemas de evolução da escola.)
A Tuiuti ficou a uma posição do rebaixamento, e se manteve no Especial graças à sua bateria e ao canto de seus componentes. Quanto ao carnavalesco, já foi anunciado na Unidos de Vila Isabel para o carnaval 2023. Nossa expectativa, mais uma vez, é a mais alta possível. Sabemos que Paulo Barros é alguém capaz de um investimento em um diálogo mais intenso entre os aspectos visuais e aquilo que uma escola pode contar.
No ano que vem, queremos testemunhar uma nova obra daquele artista transgressor e experimental de quem sentimos muita saudade. Aquele que temos procurado tanto, nos últimos desfiles, sem conseguir encontrar.
Leia também:
Beija-Flor – Desfile de 2022 – Resenha crítica por Daniela Name – CLIQUE AQUI.
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Professor e pesquisador na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, doutor em Letras e apaixonado pelo carnaval carioca.
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