A constatação de que Rosa Magalhães e Renato Lage não estarão à frente de nenhuma escola do Grupo Especial em 2024 significa uma pausa de um longo e importantíssimo capítulo da história do carnaval carioca. Dois dos maiores artistas do Brasil, considerando-se todas as linguagens artísticas, retiram-se de cena por pelo menos um ano, o que não acontecia há mais de quatro décadas.
Quero celebrar a dupla que me deu os primeiros enredos do meu samba. Se hoje escrevo sobre carnaval, isso se deve ao fato de os desfiles das escolas de samba terem sido o primeiro museu acessível à menina suburbana que um dia eu fui. Nesse museu, nada foi mais constante e importante do que Rosa e a Renato para a minha formação. Se aprendi um pouco mais sobre história do Brasil, pintura, escultura e teoria da cor – nos primeiros anos por osmose, e já adulta com sede consciente – devo isso ao trabalho vertiginoso e profundamente honesto desses dois criadores.

Se estou aqui, tentando não chorar enquanto teclo cada letra nas cinzentinhas do notebook, foi porque viajei em cada navio que Rosa colocou na avenida, reafirmando o desfile como uma grande odisseia. A avenida como o fluxo que teatraliza as melhores histórias que podemos recolher e reinventar; a passarela como o tempo-lugar que veste de imagens os corpos em movimento. Rosa foi meu aprendizado do barroco, não pelos dourados e volutas apontados pelo lugar-comum, mas pela eterna revisitação e ampliação das mesmas cenas, que a cada nova investida (ou acúmulo de outras visualidades sobrepostas) são revestidas de mais sentidos. Uma aranha fiandeira que nos ofereceu mangas, cajus e tupinambás, Maurícios de Nassau e reis de Angola, soldadinhos de chumbo e bois da cara preta como centelhas daquilo que somos, como caminhos para nossa reinvenção.

Se estou aqui, nessa plataforma que me empenho para manter há 6 anos, e me permitindo um texto em primeira pessoa, devo isso à noite em que liguei a televisão de tubo da sala e senti o impacto dos escafandristas de Chuê chuá caminhando lentamente pela avenida, com a imaginação de Renato transformando a própria passarela em seu enredo, fazendo do ar algo líquido, provocando o espectador a ver na pista as algas, peixes e conchas que poderiam emoldurar os mergulhadores. Se estou aqui, e me tornei primeiro uma jornalista ligada à literatura e às artes visuais, depois uma crítica e curadora, foi porque Renato me ofereceu os globos terrestres carregando bebês, como fruto das mãos divinas, como símbolo de uma Gaia em crise – a imagem do mundo como um signo de metalinguagem, sonho e febre de um artista que é o rei da síntese visual. Com a imagem do nosso planeta, Renato comenta de forma direta e poética o seu próprio fazer criativo, suas gêneses como artista. Nada sobra em suas alegorias, porque o desenho engole tudo. O que seria um “queijo” anexado por outro carnavalesco, na imaginação de Renato vira o botão do dial de um rádio, a chaminé de uma maria fumaça, o miolo de uma flor – e assim os corpos dos componentes se integram às imagens do enredo como a população de um país de maravilhas.
Fonte e espelho para nova geração
Se hoje vejo os desfiles de Bora e Haddad, e me deslumbro com Exus, Cosmes e Padilhas, devo isso ao dia, numa tarde em Irati, interior do Paraná, em que Bora desenhou a emblemática alegoria de “Marraio feridô”, de Renato, para mais tarde mergulhar no universo de Rosa a ponto de escrever uma tese e um livro sobre ela. Se hoje pesquiso a obra de Leandro Vieira, sua capacidade de escrever histórias e de transformar essas histórias em imagens que seguem em brasa depois da Cinzas, devo isso ao olhar despudorado que o artista sempre lançou para esses dois mestres na arte de vestir pessoas e construir mundos de ficção.
Se vi o menino-rei negro imaginado por Jorge Silveira na Viradouro e sei de sua imensa habilidade construtiva para alegorias, foi porque o carnavalesco campeão em São Paulo pela Mocidade Alegre um dia foi também um menino, percorrendo a concentração de mãos dadas com o pai, movido pelo deslumbramento com o que Rosa e Renato iriam mostrar. Se João Vitor Araújo hoje chega com todos os méritos artísticos ao carnaval de uma escola com a grandeza da Beija-Flor foi porque soube observar Rosa e Renato. Se Jack Vasconcelos reuniu coragem para abraçar o próprio delírio foi porque antes esses dois criadores mostraram ser possível.
Se Annik Salmon, Guilherme Estêvão, Marcus Ferreira, Tarcísio Zanon, Antônio Gonzaga, André Rodrigues e tantos outros carnavalescos investiram e ainda vão investir em seus próprios vocabulários plásticos e cênicos foi porque Rosa e Renato passaram quatro décadas carregando o legado dos desfiles que quase nenhum de nós assistimos, e pavimentando a pista para o futuro do qual os dois ainda poderiam participar. Todos certamente sabem de seu papel e sua relevância.


E também é por isso que era preciso escrever sobre Rosa e Renato nesse momento de pausa, sobretudo por saber que essa lacuna não acontece por um desejo da merecida aposentadoria. Ambos têm ainda muito vigor intelectual e criativo, mas enfrentam o despreparo dos comandos das escolas de samba para lidar com o envelhecimento daqueles que são mestres e referências das gerações mais jovens, sobretudo daqueles, dentre os mais jovens, que vêm realizando excelentes desfiles.
Enquanto enredistas, pesquisadores e duplas criativas são providenciados para artistas com currículo ainda bem enxuto – artistas estes que deveriam ter fôlego para formular suas próprias propostas -, cobra-se de Rosa e Renato, dois senhores, a mesma energia que tinham quando começaram no carnaval, na turma de discípulos de Fernando Pamplona.
A avenida presenciou muitos erros graves em 2022 e 2023 – correntes, chibatas, pregos nos olhos de pessoas negras, fotos de homenageados trocadas, absorções das obras alheias – e eles foram tolerados nos desfiles assinados por jovens equipes que, como cantarolou um querido amigo, são “a maior banda dos últimos tempos da última semana”. Mas os erros que Renato cometeu – sim, ele cometeu, e pode ser criticado por isso – foram avaliados reiteradamente pelos comentadores de carnaval que usam o Twitter como plataforma de expressão e análise (em 280 caracteres). E ele foi execrado como se estivéssemos com o Tribunal do Santo Ofício ainda em vigor.
A natural diminuição de energia por parte de Rosa também foi o mote etarista para comentários inaceitáveis. Alguém com sua história merecia muito respeito dessa audiência que se acha sabida, mas está sempre febril, sempre em um estado de combate que é fruto de um ambiente paralelo – não, o Twitter não é a realidade, e ele sacrifica o debate na linguagem pobre, curta e sempre insuficiente.
A linguagem é o registro daquilo que somos e almejamos ser, e esta é uma ferramenta adequada a esses tempos de lacração, mas incapaz de gerar a dialética necessária à arte. É muito eficiente quando usada para enviar atalhos para outros discursos (links para vídeos, textos, áudios, canções), para fazer pequenas picardias e provocações, mas em si mesma não é e não será o espaço da análise, do diálogo e da documentação – pilares fundamentais para o discurso sobre arte. Documentação, aliás, exige fôlego e coragem, e talvez seja por isso que muitos preferem ser especialistas sem escrever mais do que 280 caracteres. Os “fios” melhoraram um pouco essa situação, mas como são raros aqueles que realmente “esticam” a análise.
O Twitter é ótimo para a formulação de indigentes frases de efeito que são “jogadas para as arquibancadas”. É igualmente sensacional para aqueles que curtem surfar nos reposts acrescentando duas ou três palavrinhas “polêmicas”, dois ou três elogios àquele artista amigo. E essa tem sido a prática dominante de alguns dos que se dizem analistas de carnaval.
Volto a Renato e Rosa. Dois mestres que amadurecem deveriam ser tratados como guardiões dos fundamentos de uma coletividade. Não é isso o que dizem as tradições dos povos afrodiaspóricos e as de nossas nações originárias? Um rei e uma rainha anciões não são uma realeza que amplia o legado de uma dinastia?
Artistas com a magnitude de Rosa e Renato são humanos, como todos nós, e são um patrimônio daquilo que amamos assistir, pesquisar, realizar. O fato de o carnaval ser uma arte multilinguagem atravessada por uma competição não é desculpa para que os “especialistas” no debate dessa manifestação usem suas redes para tentar destruir trajetórias com comentários de torcedor, desprovidos de qualquer análise.
Inúmeros estudos nas universidades ao redor do mundo já nos alertam sobre o encurtamento intelectual – de fruição estética, de capacidade de interpretação de texto e de articulação de escrita – provocado por plataformas como o Twitter. O carnaval precisa e merece articulações narrativas para além desses meios.
Rosa e Renato, enredos do meu samba, são também o desfile afetivo de muitos artistas que vieram depois – e não apenas os da folia. Fica a certeza de que o passarinho azul pode piar à vontade, mas é de sua natureza ir se dissolvendo na direção do esquecimento e do silêncio, em muito pouco tempo.
Rosa e Renato, com suas imagens e histórias enraizadas no imaginário coletivo, já são eternos – e a eternidade não se negocia.

