“Resistência”, o enredo proposto pela pesquisadora Helena Theodoro e o Departamento Cultural do Salgueiro e desenvolvido pelo carnavalesco Alex de Souza, partia de uma premissa: retratar a história de aquilombamento do povo negro, mas no específico território do Rio de Janeiro. Uma missão que foi plenamente cumprida em termos narrativos: ainda que saibamos dos episódios dramáticos da diáspora africana, e não possamos esquecê-los para que não se repitam, a população carioca negra do Salgueiro não é fruto do sofrimento e do martírio de seus ancestrais, que ainda foi presente de forma anacrônica e inadmissível em alegorias e fantasias de outras escolas. Tampouco é formada apenas pelo imaginário de reis e rainhas míticas que vieram da África. As mulheres e homens homenageados pela escola são pessoas comuns, mas que construíram biografias extraordinárias, colaborando decisivamente para a força de sua coletividade.
Um conceito que a comissão de frente coreografada por Patrick Carvalho, com o título de “Akikanju Ijó” (“Dança dos heróis”) soube explorar muito bem. Vestido e maquiado em tom de bronze, um dos elencos a Comissão representou estátuas de grandes personalidades que fizeram parte da história e dos enredos do Salgueiro – caso de Zumbi dos Palmares, da bailarina Mercedes Baptista, o engenheiro André Rebouças, o marinheiro João Candido – e, no “torrão amado” enunciado pelo samba, a comunidade do Salgueiro, se conectaram à terra, elemento sagrado para ancestralidade africana. A Mercedes ainda vestida em bronze, como monumento, convoca o segundo elenco, o das iaôs, e um ritual enuncia a trajetória daquela personagem, hoje de fato celebrada como estátua no Largo da Prainha , para se tornar a primeira bailarina negra do Theatro Municipal. Surge então Ingrid Silva, que pode ser vista como sucessora de Mercedes, e evidenciando que, na dança destes heróis, sementes foram plantadas no Salgueiro e no Rio de Janeiro.
O desfile se dispôs a uma jornada clássica, que parte desse solo fértil do morro para a abordar a resistência territorial, ao mostrar o compositor Djalma Sabiá como griô, o grande contador de histórias do Salgueiro. A partir daí, a escola inicia um percurso histórico que lembra o quilombo Camélias do Leblon, a Pedra do Sal (em um tripé bastante ousado em termos plásticos) e figuras como Dom Obá. Segue-se a isso o segundo setor, da religiosidade, que no Brasil tem íntima relação com a ideia de uma celebração coletiva. São lembradas as giras de caboclo, o povo da rua e a Festa de Iemanjá, esta em uma bela alegoria que encerra o setor. A passagem entre a fantasia das irmandades católicas negras e as das alas sequenciais, que tematizam o candomblé e a umbanda, mantinham a unidade cromática por meio da interseção entre o branco, o dourado e o preto. Uma ligação sutil. No 3o setor, do popular ao erudito, a celebração do corpo que canta, dança, intepreta e vai da capoeira aos artistas negros que subverteram uma lógica europeia no Theatro Municipal, caso de Mercedes e do dramaturgo, ator e escritor Abdias do Nascimento.


Até esse momento, o desfile transcorreu sem grandes riscos, com tudo que isso tem de bom e de perigoso. Por um lado, a escola pôde contar com a extrema habilidade de Alex de Souza em manejar um vocabulário clássico na construção de fantasias. O artista vem reinterpretando os elementos que constituem um figurino de carnaval (chapéu, peitoral, saia, pulseiras, capas) com extrema perícia em sua trajetória. Também conhece, domina e tem curiosidade pelos materiais, além de lidar bem com a paleta de cores que faz parte de uma espécie de “geometria ancestral” norteadora do Salgueiro, e que reside no vermelho e no branco da escola somados ao preto. Mas esse desfile competente e eficaz também traz um conforto que, com exagero, poderia deixar o Salgueiro refém de uma monotonia.
Isso se não tivesse passado a segunda metade da escola, a do quarto e do quinto setores, em que foram abordados uma cultura negra contemporânea – como o Baile Charme de Madureira – e os núcleos de resistência negra das favelas e movimentos sociais. Aí, artista e a agremiação se permitem um maior grau experimental, o que sem dúvida consegue gerar empatia e aderência nas arquibancadas, sobretudo as dos setores populares. No zum-zum pós-desfile dos sites e redes sociais, essa foi a parte do desfile mais criticada, aquela na qual os comentaristas não reconheceram a visualidade que eles esperavam. Mas cabe a nós ter alguma expectativa sobre o trabalho dos artistas ou entender esse trabalho em suas minúcias?
Com os segmentos finais, as mulheres e homens de bronze da Comissão de Frente reencarnam na militância negra do Rio de Janeiro e também em funkeiros, charmeiros, grafiteiros, rappers. Como num ciclo, o Salgueiro parece afirmar que as sementes plantadas no passado, no solo do “torrão amado” seguem frutificando em outros homens e mulheres comuns, mas igualmente extraordinários.
O samba da escola não era um dos melhores do ano, mas rendeu bastante no desfile a partir do desenho de bateria dos jovens mestres Guilherme e Gustavo, crias da rua Silva Teles, quadra da escola. Um trabalho que enfatizou o peso dos tambores e também de instrumentos de afoxés, como os agogôs, imprimindo na atmosfera sonora aquilo que o desenvolvimento de enredo apresentou visualmente.





