A acertada escolha do Acadêmicos do Salgueiro em apresentar seu enredo Hutukara, desenvolvido pelo pesquisador Igor Ricardo e pelo carnavalesco Edson Pereira, a partir da perspectiva dos próprios indígenas Yanomami (recorrendo inclusive a consultas ao líder indígena Davi Kopenawa), colocou a escola e seus segmentos diante de um desafio: encontrar novas formas de representação para elementos relacionados às cosmologias indígenas, entre eles os xapiri e o transe. Para isso, novos materiais e soluções cênicas foram empregados, caso das redes de dormir e da transparência na comissão de frente. Recursos tradicionais foram usados de maneiras incomuns, em diferentes contextos, como espelhos e vidros em alguns carros alegóricos, produzindo um efeito de reflexo e brilho importantes para a narrativa do enredo.
De um modo geral, as cosmologias indígenas são marcadas pela onipresença de relações entre humanos e seres não humanos. Os xapiri (xapiripë), descritos por Eduardo Viveiros de Castro como “ancestrais animais ou espíritos xamânicos que interagem com os xamãs de seu povo”, são entendidos pelo antropólogo menos como uma classe de seres e mais como uma “síntese disjuntiva entre o humano e o não-humano”. Esse modo diverso de compreender seres e coisas a partir de outra ontologia, isto é, a partir de outros entendimentos sobre os seres e coisas, pôde e poderá dar brechas para novas soluções em desfiles, como vimos nesse ano no Salgueiro e na Grande Rio (leia aqui ensaio sobre o desfile), outra escola que recorreu a novas narrativas para tratar da questão indígena na Marquês de Sapucaí. No desfile do Salgueiro, pelo menos dois elementos chamaram atenção nesse sentido: a presença de uma bolha translúcida na comissão de frente que envolvia componentes caracterizados como indígenas, e a presença de espelhos fragmentados em alegorias que remetiam à floresta. Ambos podem ser compreendidos como novas formas de representar na avenida os xapiri.

Na comissão de frente intitulada “Ya nomaimi! Ya temi xoa!” (Eu não morro! Ainda estou vivo!), coreografada por Patrick Carvalho, componentes eu representavam indígenas tinham sua dança interrompida por homens não-indígenas que tentavam impor violentamente sua noção de desenvolvimento ocidental – por meio do garimpo, das monoculturas agrícolas predatórias e das madeireiras –, representada por armas que cuspiam fogo. A violência cessava com o surgimento, a partir de um tronco provavelmente da árvore yãkoana, de uma grande bolha translúcida que deixava entrever a silhueta de três seres, xapiris ancestrais que também são protetores e curadores de males que, por sua vez, ameaçam a floresta, seus habitantes e também, não devemos esquecer, aqueles que habitam as cidades.
Os seres eram ofuscados tanto pelas luzes presentes no tripé e nos demais elementos cenográficos da comissão de frente, como também pela rede de linhas que surgia da bolha fraturada que os envolvia, as quais deixavam entrever fragmentos dos xapiris, que dançavam e embalavam um terceiro sujeito representando um indígena. Essa representação evoca descrições de transes e dos xapiri descritas por Davi Kopenawa e pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.
Segundo o próprio Kopenawa na narrativa descrita a Bruce Albert no livro A queda do céu (2015), os xapiris se apresentam aos xamãs depois que esses inalam o pó da árvore yãkoana, dançando na forma de minúsculas partículas de poeira cintilantes “sobre grandes espelhos que descem do céu”, percorrendo caminhos que se parecem com “teias de aranha brilhando como a luz do luar”. De acordo com Viveiros de Castro, quando entram em contato com os xapiris em seu transe, os xamãs transitam entre estados e também se tornam espíritos, tornando indiscerníveis os estados de “humanidade” e “animalidade”, já que esses espíritos são animais ancestrais e os xamãs são humanos que mantém características primitivas anteriores à separação entre humanos e animais. É por meio desse transe, desse sonho, que os xamãs sonham, imaginam e “aumentam seus pensamentos”, isto é, produzem conhecimento.
Ofuscamento é característica primordial dos xapiris
Essa descrição evidencia a importância da luz, e portanto do brilho, do reflexo e do ofuscamento, enquanto propriedades dos xapiris. Reflexo e ofuscamento juntos apontam para uma ambiguidade desses seres, os quais são imagens, contudo de outro tipo, pois não são nítidos e nem visíveis. Consistem em mirações que são vistas através dos olhos dos próprios espíritos. Trata-se de uma outra concepção de representação, que não se dá pela via da semelhança (ícone), mas da contiguidade (índice). Em outras palavras, os xamãs não vêem representações figurativas de seres ancestrais, mas transitam ontologicamente e se tornam eles próprios seres ancestrais para, então, também serem vistos por essas imagens. Esse agenciamento ocorre também, por exemplo, na relação entre presa e predador na caça, onde o humano deve “tornar-se onça”, isto é, seduzir ontologicamente o animal para incorporá-lo, assunto mais extensamente explorado pelo impactante desfile da Grande Rio, que será analisado por Daniela Name na Teia Crítica Carnaval 2024.

Há outras soluções interessantes no desfie para tratar desses seres de luz, como os espelhos fragmentados utilizados em grande quantidade no abre-alas Hutukara: a nova terra-floresta, e na segunda alegoria Amoa Hi: a árvore dos cantos, resultando em uma espécie de floresta de luz – ou, como nomeia Viveiros de Castro, “floresta de cristal” – como efeito da presença dos xapiris na mata. Também na terceira alegoria, A aldeia Watoriki, a luz intensa no interior de uma grande casa indígena ofuscava componentes femininos que por vezes eram vistos como silhuetas, sugerindo certa indiscernibilidade entre humanos e não-humanos. É possível aproximar tal recurso cênico às fotografias da série Casa (1974) que Claudia Andujar fez no interior escuro de habitações Yanomami, nas quais indígenas aparecem envoltos por luz, como espectros. Ainda, componentes que trajavam roupas pratas e espelhadas em frente à primeira ala e sobre o carro abre-alas faziam referência mais explícita a esses seres de luz.
Essas soluções, assim como as fraturas na bolha da comissão de frete, de certo modo nos transportam para a dimensão do transe, do indiscernível, e nos sugerem como poderia ser a experiência de ver os xapiris por meio de seus olhos. São conceitos complexos de epistemologias indígenas que o carnaval passa a explorar para fugir do senso comum e das representações genéricas e eurocêntricas que reduzem a diversidade indígena a estereótipos.

Outra característica marcante no desfile do Salgueiro que contornava estereótipos foi o questionamento da noção eurocêntrica de “progresso” a partir da perspectiva indígena, um contraponto ao antológico desfile de Fernando Pinto feito na Mocidade Independente de Padre Miguel de 1987, Tupinicópolis, quando o indígena aderia ao modo de vida do não-indígena. O samba salgueirense propunha o contrário, dizia “não queremos sua ‘ordem’, nem o seu ‘progresso’”, enquanto no tripé Comedor de terra símbolos do entendimento de desenvolvimento para não-indígenas, como a retroescavadeira, foram representados como monstros predatórios. Também na quarta alegoria A tragédia Yanomami, referências à serie fotográfica de Claudia Andujar, Marcados (1981-1983), lembravam como o projeto de ocupação da Amazônia dos governos ditatorial-militares elaborados no país nos anos 1970 tiveram consequências desastrosas para os Yanomami uma vez que ignoravam e desrespeitavam seus modos de vida e saberes específicos, impondo concepções de “progresso” estrangeiras e de efeito nefasto à existência daqueles indígenas.


Acima, alegoria inspirada na série “Marcados”, de Claudia Andujar, e uma das obras da artista – Clique em cada imagem para ampliá-la
Nos últimos anos, o questionamento da noção eurocêntrica de “progresso” esteve presente em outros desfiles, como os da Imperatriz Leopoldinense de 2017, Xingu, o clamor que vem da floresta, do carnavalesco Cahê Rodrigues, e da Portela de 2019, Guajupiá, terra sem males, dos carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage. No primeiro caso, a usina hidrelétrica de Belo Monte foi representada como “Belo Monstro” que “rouba as terras dos seus filhos / Devora as matas e seca os rios”. Já no desfile da Portela, indígenas foram representados reagindo com flechas à “selva urbana”, enquanto o samba afirmava que os mesmos não se curvavam nem a “bispo” e nem a “capitão” – agentes do epistemicídio e do genocídio, respectivamente – e alertava para a necessidade do respeito à natureza e da prática do bem viver para que o céu não mais escurecesse em decorrência das queimadas criminosas realizadas na Floresta Amazônica, oficialmente incentivadas e acobertadas pela gestão federal no período de 2019 e 2022. O Salgueiro, ao se somar a esses antecedentes, contraria representações e narrativas romantizantes e arcaizantes, que compreendem indígenas como presos ao passado, uma forma de negar a eles o direito à participação nas discussões políticas do presente.
Soluções plásticas não acompanham rica perspectiva do enredo
Entretanto, considerando que o enredo do Salgueiro propunha tantos questionamentos e inversões às narrativas recorrentes sobre indígenas que já passaram na Marquês de Sapucaí, as soluções plásticas da escola poderiam ter dialogado mais com essa perspectiva. A escola se preocupou com o uso de materiais de menor impacto ambiental e com o reaproveitamento de carnavais passados, bem como buscou utilizar novos materiais e elementos apropriados ao enredo, como por exemplo redes de dormir, cestarias e esteiras. Porém, a referência para esculturas e outros adereços que representavam humanos, animais e plantas era a clássica naturalista, recorrente em outros desfiles. Era a oportunidade do Salgueiro ter explorado visualidades indígenas, seus grafismos e suas formas de representação, como o fazem artistas Yanomamis como Joseca Yanomami e Ehuana Yanomami, ambos representados em alas da escola. Talvez esse seja um sintoma da dificuldade em integrar e transformar pesquisa textual em imagens, enredo em alegorias e fantasias.
Referências
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Cia das Letras, 2015.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006.
Leia do mesmo autor:
Inversão e montagem nas cabeças degoladas de Leandro Vieira – Sobre o desfile da Imperatriz em 2023 – Clique aqui para ler
Leia sobre o Salgueiro:
Yanomamis acima e além da dor – Bernardo Pilotto – Clique aqui para ler
Foto do cabeçalho
Marco Terranova / Riotur
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Professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Doutor em Artes Visuais pela UnB, designer, amante da literatura e imperiano.
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