A Mocidade Independente de Padre Miguel um fruto que não é fruto: o caju e reconhecido pelo seu pedúnculo floral, carnudo e suculento, sinuoso e adocicado que ganha forma e lambuza em desejo esse sabor proibido como umatransliteração da sensualidade e tentação humana. Uma associação a luxúria e atração carnal e um ponto principal presente no enredo que nada mais e do que uma carnavalização da fruta. O enredo, desenvolvido plasticamente pelo carnavalesco Marcus Ferreira, a partir de redação e pesquisa de Fábio Fabato, gerou um samba vibrante, de Mario Adnet e parceiros, e busca movimentar a história deste fruto/pseudofruto, que agitou o cenário pré-carnavalesco.
A proposta da Mocidade, no entanto, não se limita apenas à animação. Estende-se a uma construção plástica que busca conexões sedutoras com a História do Brasil e a História da Arte, além de uma conexão afetiva com a comunidade da Vila Vintém. Nos bastidores, a agremiação
aposta em um desfile que resgate a essência dos anos 1980 e 1990, com a alegria dos desfiles de Fernando Pinto e Renato Lage, fazendo um mergulho tropicalista na fruta que é “a cara do Brasil”. A escola promete se divertir na avenida e estender a diversão às arquibancadas, e aposta neste trunfo para a abertura dos dos desfiles de segunda-feira de carnaval.
Muito além das temáticas que podem ser abordadas musical e visualmente através
deste enredo, a Mocidade Independente de Padre Miguel em 2024 se pendura em uma
motivação ainda mais forte: a aproximação com a comunidade. Nos ensaios de quadra e de rua e no ensaio técnico da Sapucaí, ficou evidente a participação e o envolvimento dos componentes.
Esta alegria é alimentada pela forma com que o enredo foi construído em termos narrativos, com uma aposta na vibração, irradiada para o samba, cheio de referências e um vocabulário da cultura de massa (“Debret, chupa essa manga!”).
A pesquisa se inicia com referência a história do curumim Porã que, assim como toda sua tribo no sertão cearense, prova do caju e espera ansiosamente pela época do ano em que a fruta vem para adoçar a vida de cada um. Assim, como a castanha serve para os indígenas como forma de contagem de ano, entende-se o fruto e o cajueiro como raízes de ancestralidade dos povos brasileiros.
O povo Tremembé serve como inspiração, principalmente pela dança ritual do torém, em que os toremzeiros consomem uma bebida fermentada feita do caju em um momento da dança, conhecido como mocororó. Porém, como nem tudo são cajueiros, antes mesmo da colonização os povos do interior já iriam ao litoral em busca do doce saboroso e carnudo. Dessa maneira o enredo retrata momentos históricos do caju e da exploração europeia no Brasil, onde o fruto fez parte de forma coadjuvante, mas pode ser visto como personagem principal nessa perspectiva. Veremos imagens do caju levado para outros continentes pelas grandes navegações?
A fruta será o centro de uma história herdada, passada por anos pelo paladar, evoluindo
para a malemolência popular, da dança, da sensualidade, e da tropicalidade. Os trajes
brilhantes e frescos, adequados ao verão, evocam uma celebração descompromissada,
remetendo à descontração das festas populares com características que resgatam a alegria
e o calor humano.

Os setores vão percorrer mais de 500 anos da história brasileira, desde os povos originários até as músicas como Cajuína, de Caetano Veloso, e Morena Tropicana, de Alceu Valença, emergindo como fonte de inspiração para a criação artística na concepção do desfile. Há ainda outro fruto, o da ganância colonial para os grandes sabores que o país produzia e assim sendo levado ao publico da mais variada classe o sabor que antes era o símbolo do povo.
Essa jornada, permeada por bom humor e duplo sentido, tem encontrado excelente vetor na voz e na performance do cantor à frente do carro de som da escola, Zé Paulo Sierra. É uma proposta que representa não apenas uma crônica temporal, também explora as múltiplas camadas da identidade nacional. Com uma idealização antropofágica, presente nas vertentes tropicalistas que já desfilaram pela avenida, o enredo tem abordagem peculiar. Há espaço para piadas com Debret, conhecido pelas suas pinturas sobre o cotidiano do Brasil Colônia a partir de uma perspectiva um tanto singular – e o enredo evidencia seu olhar eurocêntrico, sem despir o artista da sua importância estética e documental. Em contrapartida, uma alusão a elite modernista do século XX. Abrindo questões para uma crítica sutil às visões entoadas progressistas e nacionalistas que, apesar de quebrarem com as construções tradicionalistas, muitas vezes se mostravam restritas às diversidades.
O enredo pode se revelar como um possível impasse resolvido de forma contemporânea, propondo uma interpretação que transcende a objetificação do corpo feminino. A sensualidade, aqui, é apresentada de maneira ampla, afastando-se dos estereótipos e abraçando a diversidade, que representa não apenas uma subversão de caricaturas de um passado carnavalesco, mas também uma reflexão sobre a sociedade e suas barreiras historicamente impostas. (E, se cá estamos a falar de poesia, que de forma lúdica a escola possa mostrar o profundo do imaginário popular, do refresco mais gelado e da batida mais quente).
Ao escolher o caju como protagonista de sua narrativa, a Mocidade faz duas promessas ao público: a de um desfile animado e a possibilidade de transformar este cortejo em uma obra de arte crítica e provocativa. Ao apontar para a quebra de padrões estéticos e conceituais (o que só vamos aferir na avenida), a escola convida o público a saborear a doçura do carnaval, sem abrir mão de mergulhar na complexidade do tema do enredo. O caju pode nos brindar com um apanhado histórico além do regional, se tornando um símbolo vibrante que conecta as tradições ancestrais com as expressões contemporâneas da cultura brasileira.
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Foto do cabeçalho
Divulgação/ G.R.E.S. Mocidade Independente de Padre Miguel

Teia Crítica Carnaval 2024
Para sua Teia de Carnaval /Dobras da folia, a Caju mantém a parceria com o Laboratório de Arte e Estudos da Alteridade (LAPA), do Instituto de Artes da Uerj. Ruan Avelar é graduado em Artes pela universidade e faz parte dos autores na Incubadora Crítica da Caju.

