Quando a Viradouro terminar o seu desfile de 2024, no alvorecer da terça-feira de carnaval, vai concluir dois cortejos em vez de um. Arroboboi, enredo que a agremiação de Niterói propõe este ano, é, de muitas maneiras, um desdobramento e um desejo de continuação da proposta sobre Rosa Maria Egipcíaca, vice-campeã em 2023.
“Arroboboi” é uma saudação – algo como “Salve o espírito infinito da serpente”. Ao escolher falar sobre Dangbé, a serpente sagrada vodum da região africana da Costa da Mina, o carnavalesco Tarcísio Zanon insiste em dar à luz novos frutos do ventre de Rosa Maria , mais precisamente do rico universo de imagens e narrativas que a personagem movimentou em seu próprio repertório como artista, mas também no imaginário coletivo de toda a comunidade da Viradouro, uma escola com grande apreço pelas sagas femininas.
Zanon teve novamente a parceria de pesquisa e texto de João Gustavo Melo, e os dois partiram do livro As sacertodisas voduns e as Rainhas do Rosário, dos historiadores Aldair Rodrigues e Moacir Maia, mas escolheram caminhar por muitas bifurcações para contar um pouco da história do culto à serpente no Benim e de sua vinda para o Brasil, onde, entre outras regiões, enraizou-se (talvez a palavra melhor seja “enroscou-se”). Dangbé foi trançada com o candomblé de matriz jeje no Recôncavo Baiano e na região metropolitana de Salvador.
Há muito em comum e também bem-vindos desvios entre os dois enredos e seus desenvolvimentos. No carnaval passado, Zanon teve a oportunidade de mostrar, em seu primeiro desfile solo na Viradouro, o amadurecimento de seu vocabulário visual e de suas inquietudes temáticas. Este ano, sentiu-se encorajado a mergulhar ainda mais fundo em algumas propostas, radicalizando experiências com materiais e a paleta contrastante do trabalho anterior.
Sob o efeito dos venenos e dos antídotos da serpente vodum, Arroboboi vai começar com um duelo entre os reinos de Uidá e Aladá, no Benim. A guerra entre os dois exércitos será tingida, de um lado, por laranjas e terracotas; do outro, por variações de azul (ultramarino, cobalto, celeste). Opostos e complementares na tabela cromática, laranja e azul são cores que, próximas, são percebidas como uma espécie de erupção. Tarcísio vai usar esse propriedade para emular a disputa entre as nações e também para transmitir a sensação de movimento, ampliada pela sinuosidade da própria cobra, que se levanta como grande vencedora da disputa e passa a ser o animal sagrado da iniciação feminina no culto vodum. As formas e as cores como uma encarnação visual daquilo que o enredo conta.
Materiais reflexivos e tons ácidos
Depois desse momento, o desfile vai apresentar a travessia para o Brasil, mergulhando em diversas atmosferas distintas. Uma delas é a que o carnavalesco define como “ofídica”, com alegorias e fantasias recobertas com materiais fluorescentes e reflexivos, responsáveis por uma jornada experimental de toda a equipe do barracão, e pelas cores ácidas (vistas em detalhes nas duas fotografias de Ruan Avelar no slideshow abaixo). O visual da Viradouro em delírio, depois da mordida da cobra, ou, mais do que isso, transformado na própria cobra, com suas escamas furta-cor.
Já no Brasil, há o setor em que a serpente muda de pele algumas vezes, para se transformar em aliada de outros credos baianos (o vodum patrocinando a insubordinação e a busca pela liberdade lado ao lado com as ladainhas). Neste ponto do desfile, Zanon terá a oportunidade de reabrir a canastra afetiva de sua origem mineira. A equipe da Viradouro chega a fazer brincadeira com o fato de o artista sempre dar um jeito de “encaixar uma igrejinha” em seus enredos. A “igrejinha” não é literal, e sim uma metáfora para a teatralidade barroca e o repertório ornamental do período colonial brasileiro, que Zanon usa como referência histórica, mas também procura reler de forma contemporânea, com o uso de pompons, grelôs e outros elementos têxteis. Não vão faltar a “igrejinha” simbólica e nem os vermelhos terrosos, enferrujados e densos que já são uma marca do artista na Viradouro (1).
No último setor, Arroboboi termina como a celebração do jeje nos versos de Aldir Blanc para Nação, parceria com João Bosco e Paulo Emílio: “O céu abraça a Terra/Deságua o Rio na Bahia”. Este ponto aparece na sinopse de João Gustavo Melo como “Terra, terreiro cósmico”, no qual a serpente é revelada como o tempo de construção e destruição de todas as coisas, o ciclo infinito e o “rodopio do universo”. “Jeje, minha sede é dos rios/ A minha cor é o arco-íris/ Minha fome é tanta” (ouça aqui a gravação de João Bosco). Ao se precipitar no mundo como forças da natureza, Dangbé se desenrola nos tons do arco-íris e do amanhecer, com as imagens criadas por Zanon levando este fim de desfile para o seu início – mas, como nas curvas do infinito, não se trata de uma repetição e sim de um recomeço ou, mais do que isso, de uma transmutação. O veneno e a cura. O veneno é a cura.
Do tempo tentacular às curvas do infinito
Afirmei no início deste texto já bem longo (alguém chegou até este ponto? alô, tem alguém aí?) que a Viradouro vai concluir dois desfiles na próxima terça-feira de carnaval. Gostaria de reescrever a frase, propondo agora que a Viradouro vai dar um fim aos seus dois últimos desfiles. Existiriam outros; existirão outros, os necessários. Mas, entre eles estes falsos fins, as histórias provavelmente ainda vão ficar girando, tanto para alimentar o processo criativo de um artista como Zanon quando para acrescentar novas camadas às memórias comuns da comunidade desfilante da Viradouro.

Escrevi ainda, nos primeiros parágrafos que derramei por aqui, que há muitas semelhanças e distinções entre Rosa Maria Egipcíaca e Dangbé. No quase-fim das linhas, passo a acreditar que as diferenças são transmutações. Elas agem como uma purgação, e também como antídoto e cura da serpente sobre Rosa. Ou de Rosa transformada em serpente, de Rosa com sua nova pele como cobra do arco-íris.
No fim do carnaval, a Viradouro terá nos entregue o segundo em uma dupla ou combo de enredos que fala sobre a fabulação e a reinvenção do tempo e das histórias. No ano passado, a entrada da escola contrastava o tom dos corais da dinastia imperial do Benim a um verde azulado, que nas cartelas de moda e decoração pode ser chamado de verde-sereia, mas que no desfile lembrava o processo de oxidação do cobre e outros materiais metálicos. O clima desse tripé era o de um ilusório encantamento, com uma espécie de caixinha de música aquática, que subia e descia ao ritmo das marés (2). Ela servia de fundo para a pequena destaque Gabi Reis, intérprete de Rosa na infância, mas a alusão a algo que carcome o metal e pode desfazer a estrutura que sustenta os corais, símbolo da realeza do Benin, já dava uma pista sobre o que poderia vir.

Na continuação deste primeiro segmento do desfile, a falsa suavidade dessa infância se desfazia a partir de uma espécie de naufrágio, com o abre-alas assombrado por monstros marinhos. O mar e suas criaturas plasmando o pesadelo do exílio de Rosa Maria, sequestrada em sua terra natal aos seis anos de idade para ser escravizada e prostituída no Brasil. Os polvos já insinuavam a tragédia emocional e psíquica da protagonista, mas simultaneamente afirmavam um tempo tentacular, irregular, fractal e de ficção, em que Zanon e seus parceiros se dispunham a reinventar o destino de sua heroína. A segunda alegoria marcava o início de suas premonições e visões, com a menina exilada sendo batizada pela Rosa adulta, já no que o texto de defesa do enredo no livro abre-alas chama de “desaguar no Rio” (3).

Se, no Brasil do século XVIII, Rosa foi diagnosticada como “louca” e enviada às masmorras da Inquisição portuguesa, onde morreu em condições pouco esclarecidas, no desfile da Viradouro era recebida no céu com realização de seu sonho de se tornar “rainha do Brasil”, ovacionada por cortejos de Cavalhada, Folia de Reis, Festa do Divino e pelo próprio carnaval. Celebrada, enfim, pela arte da reintegração diaspórica, curada por seu povo na ficção do próprio desfile, que sobrepunha o cortejo em si, acontecendo aos olhos das arquibancadas, com o cortejo enunciado pela narrativa.
Este rasgo de insubordinação imaginária do fim do desfile de 2023, em que Zanon incitava a escola à não aceitação do destino de sua homenageada, ganha outras perspectivas em Arroboboi. E elas são mais mágicas e místicas, mas muito mais reais. A serpente sagrada faz um outro tipo de travessia atlântica, com a sacertodisa Ludovina infiltrando o segredo vodum nas terras brasileiras e usando os conhecimentos sagrados para o fortalecimento da coletividade afrodiaspórica.
Não é bonito pensar o novelo das histórias que contamos como sempre o mesmo e sempre novo? Não é mais bonito ainda imaginar um tempo fabulado, tentáculo de polvo ou infinito de serpente, em que a cobra do arco-íris de agora possa transformar o destino de Rosa no Brasil setecentista? O próprio contar das histórias como aquilo que as modifica, modificando também quem as conta; as próprias imagens, cores e formas como testemunhas do tempo que foi, do tempo que é, do tempo que foi-e-é, mas também de tudo que ainda não vimos, dos devires.
Rosa foi uma feiticeira solitária, violentada e assassinada; as sacertodisas do vodum, guardiãs do segredo, apoiam-se umas às outras e são espelhos identitários e ancestrais para as componentes da Viradouro. Com Dangbé, a escola se reenrosca em Rosa para mais uma vez reinventar e curar destinos. E nada pode ser mais bonito do que uma imaginação insistente e caudalosa, que se bifurca em muitas outras. A serpente nos traz Rosa aninhada e expandida, imensa em vitórias, finalmente mudando de pele. Rosa como um corpo que não cabe mais em si, e que muda e morre, sim, mas para renascer maior.
Notas:
(1) Talvez o tom de vermelho puxado para o vinho e o marrom, tão presente no trabalho de Zanon, possa ser um outro eco de sua memória de origem, não apenas da arte sacra (tetos de Ataíde, por exemplo), também paisagem de solo ferruginoso das Minas Gerais.
(2) É instigante que a imagem da menina acima do que chamo de “caixinha de música” seja capaz de acessar um repertório de História da Arte europeia, especificamente das esculturas de bailarina criadas por Degas, para depois subverter essa imagem de “inocência” e “pureza” completamente.
(3) A imagem de uma mulher que “batiza” a outra – também a imagem de uma mesma personagem que se multiplica em tempos distintos, reforça a sensação de que Rosa Maria, nascida na região do Porto de Uidá, território dos mitos de Dangbé, possa estar reencarnando no corpo da serpente do arco-íris no enredo de 2024.
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Foto do cabeçalho:
Rafael Arantes/ Divulgação G.R.E.S. Unidos do Viradouro

Teia Crítica Carnaval 2024
Para esta teia, a Caju mantém a parceria com o Laboratório de Arte e Estudos da Alteridade (LAPA), do Instituto de Artes da Uerj. Ruan Avelar, autor das duas fotografias feitas no barracão da Viradouro para 2024, é estudante de graduação em Artes da universidade



