No desfile oficial, competitivo, a apresentação da Vila Isabel foi precedida por um cortejo catártico da Grande Rio. A escola de Noel tinha, então, um grande desafio: fechar o tão necessário carnaval de 2022 – com ressonâncias da energia deixada pela comunidade de Caxias -, cantando e contando sobre um dos maiores pilares da escola e do próprio samba: Martinho da Vila. Se no cantar desfrutamos de um dos mais emocionantes desfiles do ano, com samba acertado para os pés, os cantos e os corações – tanto dos que desfilavam, tanto dos que assistiam -, no contar tivemos algumas imprecisões, com muita opulência, mas não tanta organização e clareza narrativa. Esse descompasso não retira da Vila o grande trabalho coletivo que ofereceu, e que se repetiu nas Campeãs, mas nos convida a refletir sobre a complexidade estrutural de um desfile, que se engendra por muitos aspectos.


Comecemos pelo início, e aqui não será a comissão de frente com seu gigantesco Omolu. O que chegou antes à pista do Sambódromo foi o canto de Tinga, intérprete da escola, e a excelente bateria de Mestre Macaco Branco. O samba-enredo de Evandro Bocão, André Diniz, Dudu Nobre e parceiros, que já era bem avaliado no pré-carnaval, não só abriu os caminhos, levantando e emocionando toda a comunidade e os que aguardaram a última escola desfilar, como também serviu de base estrutural para que todo o desfile se mantivesse em plena harmonia. E a escola foi além disso: no canto e na bateria, trouxe a força e a emoção de quando ouvimos cantar Martinho.
Se nos versos e na melodia do samba tivemos um espelho para o modo vocativo como o compositor revolucionou o gênero (em passagens como “Ferreira, chega aí/ Abre logo uma gelada, vem curtir”), na escolha dos naipes e na construção rítmica da bateria ouvimos uma espécie de biografia não-visual do homenageado, com caixas, surdos e timbaus passeando por diversas variantes do que chamamos “samba”. O tributo foi muito bem forjado a partir do maior ofício de Martinho, e isso fez do desfile um cortejo de comoção.
É cada vez mais comum em comissões de frente enormes e volumosos elementos cenográficos, como também já é comum a discussão da necessidade ou pertinência deles nos desfiles, sendo às vezes até chamados de “trambolhos”. Muitas dessas alegorias no momento da apresentação tapam a visão daqueles que estão do lado oposto ao da cabine dos jurados e outras até mesmo atrapalham a própria evolução da escola. Foi este o caso da Vila Isabel: apesar da imponente apresentação de dança e do impacto ao trazer Martinho, a comissão de frente perdeu dois décimos este ano em função do elemento Omolu ocupar grande espaço da avenida e a apresentação cênica ocorrer grudada à grade. Mesmo quem assistiu, por exemplo, das arquibancadas do setor 06, ponto acima de onde fica uma cabine de jurados, não conseguiu ver parte da apresentação.

O gigantismo dos elementos cenográficos, além de atrapalhar a percepção do início do desfile, disputando atenção com o casal de mestre-sala e porta-bandeira e o carro abre-alas, às vezes atrapalha até a própria apresentação da comissão de frente, principalmente quando não há muita função ou não tão condizentes com a proposta coreográfica. Isso também aconteceu em 2022 com as comissões da Imperatriz Leopoldinense e da Viradouro (leia clicando aqui o texto da Teia Crítica sobre o desfile).
Outro assunto que acalora debates é a aparição do homenageado em comissões de frente. Deixando-os quase sempre escondidos em parte do percurso, para gerar impacto no momento de apresentação aos jurados, este recurso impede que todas as pessoas no Sambódromo possam ver o personagem central do enredo; este, por sua vez, também não interage com parte significativa da plateia. Apesar de ter voltado ao fim do desfile para acompanhar a bateria a partir do segundo recuo, Martinho só foi visto pelas arquibancadas e frisas que estavam próximas às cabines dos jurados, e as arquibancadas populares do Setor 1, importantíssimas no que diz respeito a uma conexão com a base de torcida das escolas, simplesmente não viram o compositor – e, portanto, foram privadas de um eixo central da narrativa do desfile.
Apesar dos problemas, é notável que a aparição de Martinho entronado levantou o público e a energia do desfile, e este parece ter sido o objetivo do carnavalesco Edson Pereira, que em 2023 estará à frente do Salgueiro, e da equipe que concebeu enredo e estrutura visual da Vila. Já o giro do elemento para que o cantor pudesse ver a apresentação do casal mestre-sala e porta-bandeira, bem como toda a chamada “cabeça” – os primeiros setores – da escola, atenuou um pouco o seu desaparecimento nos momentos posteriores. Essas lacunas na narrativa prejudicam o enredo e um apresentação que precisa prestigiar o público presencial, capaz de reagir imediatamente à passagem de uma escola, em vez de privilegiar a transmissão pela TV.
A escolha pelo gigantismo e efeitos visuais de impacto monumental vai ao encontro das características de Edson Pereira. O artista é conhecido por levar para avenida trabalhos opulentos, que chamam a atenção pela volumetria e pelo luxo. A visualidade da Vila, neste sentido, dialogava com a comissão de frente grandiosa. Contudo, nas questões narrativas, não estava tão assim afinada.

Talvez um dos exemplos mais contundentes de confusão narrativa resida no tratamento dado a “Kizomba”, enredo proposto por Martinho para o desfile antológico da escola em 1988 (com samba composto por Luiz Carlos da Vila e parceiros). Aparece três vezes em fantasias no desfile, duas logo antes do carro abre-alas – nos guardiões do primeiro casal e em seguida na primeira ala – e depois no quarto setor, “Lições de vida – Sabedoria do griô Martinho”. Para um artista como o homenageado, que é conhecido pela sua riqueza de composições, livros e outros feitos, a não ser que faça parte da construção de uma história a ser contada pautada na reiteração de signos, parece não ser uma boa saída a repetição de apenas uma obra ocupando espaço de tantas outras que poderiam figurar na homenagem, a exemplos dos sambas mais conhecidos que não apareceram visualmente, como “Disritmia”, “Casa de bamba” e “Devagar, devagarinho”.
Ainda falando de samba, o segundo setor do desfile, “Em cada verso mais uma obra prima: a genialidade gravada para a eternidade”, se propunha a celebrar alguns de seus sambas conhecidos, outros nem tanto. Mas o setor foi aberto por uma alegoria que não trazia referência às canções, e sim às suas inspirações quando criança. Não cabe aqui julgamento sobre quais sambas foram escolhidos para a narrativa, até mesmo pela presença de Martinho na construção do enredo, sugerindo passagens de sua vida ou mesmo histórias e elementos menos conhecidos de sua trajetória. O que se traz aqui é uma reflexão sobre o que talvez possa soar como outra imprecisão na construção da narrativa.


Um ponto que merece destaque é a caracterização da bateria, coração de todas as escolas, fardada e sem nenhuma carnavalização. Por mais que a farda represente a história que se pretendia contar (retirada do samba “Pequeno burguês”) construir uma imagens dos ritmistas de Mestre Macaco Branco – não custa repetir: eles são o coração da escola de Martinho – de terno, gravata e kep militar gera ruídos com a trajetória de um homenageado sempre associado aos movimentos progressistas e pelo clima captado pelos versos “pela 28, chinelo de dedo” do samba de enredo. Não se discute o aparecimento da canção ou no desfile, mas a escolha não muito acertada de trazê-la para a bateria no enredo, e com uma proposta visual automática, sem uma reelaboração de imagem e com ausência de carnavalização. A fantasia que se transforma em figurino. Conflito imagético: a ala de tamborins, fardada, trazia em sua pele a imagem do Martinho sentado à uma mesa de bar e de chinelo de dedo.

Nas fantasias, nem tudo foi impreciso. Foi de tirar o ar assistir à ala das baianas caracterizada de forma estupenda, como encarnações de Yáyá. Encantamento puro. Já nas alegorias houve escolhas bastante controversas, tanto na concepção e execução quanto na composição para o desfile. No carro do botequim, por exemplo, componentes caracterizados como garçons chegaram a esconder integrantes da Velha Guarda da escola, sentados nas laterais do carro do botequim. No desfile oficial, repetindo a baixa (ou nenhuma) carnavalização da bateria, um tripé representando um bonde desfilou com manequins de lojas de roupa, sem rosto, mas “fantasiados”. Uma falta de apuro bastante complicada, que foi revertida no Desfile das Campeãs com a substituição dos bonecos por seres humanos.


No rol dessas imprecisões talvez encontremos como uma das mais problemáticas a terceira alegoria do desfile, “Singrando os mares, um grito de liberdade”, simbolizando a ida de Martinho à África. No desejo de representar um percurso de volta dos seus antepassados, a partir de uma ressignificação do passado e da figura do negro para assim ressoar uma celebração de força e liberdade, o carnavalesco traz uma grande caravela (é assim que a embarcação é definida pela escola no livro abre-alas) como alegoria. O ponto alto de ressignificação foi a parte de frente da alegoria com grandes dragões do mar e um destaque de orixá Olokun, senhor dos mares, abrindo caminho para Martinho chegar à África. Contudo, seria preciso muitos mais fissuras no campo visual, que fossem além de um Olokun de braços abertos, para ressignificar na avenida um navio como este, associado à invasão europeia do Brasil e à escravização dos africanos. A caravela que em tese desejava dizer sobre a liberdade mais aparentava a imagem icônica de um navio tumbeiro. O uso de cores fechadas e outros elementos do carro, como as velas rasgadas, reforçaram o avesso do que poderia ser lido como libertação. O carnaval como obra de arte só se concretiza na passagem da escola diante do público, então não é necessário somente justificar e descrever uma alegoria com texto. É preciso ter imagem construída a partir de bases coerentes. O navio da Vila, tão anacrônico quanto os apresentados pela Beija-Flor (leia texto da Teia Crítica clicando aqui) e pela Portela (leia clicando aqui), aponta para falhas no campo discursivo, que tornam ainda mais graves na pesquisa e na construção iconográfica.

Apontar lacunas e incoerências na construção narrativa do enredo não tem a intenção de fincar âncora nos descompassos e sim notificar que eles existiram, foram percebidos, e residem especialmente no campo que marca o encontro entre discurso e imagem, isso é, nos quesitos plásticos do cortejo. Mas o carnaval não é só visualidade, e uma escola se apresenta com uma sobreposição de narrativas. A dança, o canto, o samba, o batuque e as questões identitárias – uma escola reverenciando um de seus mitos – fizeram do desfile da Vila Isabel de 2022 um dos grandes do ano. A catarse pela emoção veio sobretudo de uma comunidade pulsante, que desfilou elétrica e fazendo o samba “funcionar” ainda melhor, mostrando ainda o que o homenageado representou e representa. Não só para o Morro dos Macacos e para a transformação da Vila Isabel no que é, também para o carnaval e para a sociedade brasileira.
A magnitude da Vila retira o peso e ameniza a super importância que damos à visualidade neste “maior espetáculo da terra”. Mesmo que o visual esteja descompassado, um desfile ainda pode ser grande. Que bom pensar nisso, e nas múltiplas narrativas que constroem essas obras de arte.

Imagem do cabeçalho: Divulgação/Riotur.
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A coroação do Rei Negro – Hugo Sukman – Por dentro do enredo da Vila – CLIQUE AQUI.
Autor
Historiador da arte e mestrando em Artes pela Uerj.

