O enredo da Viradouro, um dos primeiros a serem anunciados durante a pandemia, propunha um jogo de espelhos entre o carnaval pós-confinamento, que acabou sendo o de 2022, e o de 1919, quando as ruas da cidade foram acometidas pelo frenesi pós-Gripe Espanhola.
O desfile foi iniciado com comissão de frente, o casal de mestre-sala e porta-bandeira e uma sequência de 12 alas cujas fantasias – todas diferentes entre si – eram pretas. O negrume desta primeira visão da escola aludia ao período de luto pela devastação causada pela gripe no início do século passado. Defendendo e louvando o pavilhão da escola de Niterói, Julinho Nascimento e Rute Alves usavam fantasias que aludiam à passagem do dia para a noite.

Essa transição, que a rigor esteve no cerne do enredo, era reiterada pelo carro abre-alas, uma construção quase translúcida que refletia diferentes cores. Fazendo a analogia com os tempos atuais, a escultura de um rosto na parte frontal da alegoria se movimentava, tirando a máscara.
A pesquisa realizada pelos carnavalescos Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon, e reconhecida em sua profundidade e minúcia na visita que a Teia Crítica fez ao barracão da Viradouro (leia texto aqui), foi visível na construção plástica do desfile. Os artistas acertaram ao usar referências estéticas da belle époque carioca, como a imagem das melindrosas – que vinham sobre calhambeques num belo tripé – e os traços dos cartunista J.Carlos, destaque no carro que evocava as batalhas de flores na Avenida Rio Branco, em que o gradil branco (outra referência histórica, a exemplo do coreto do antigo Hotel Quitandinha, em Petrópolis) foi “aquecido” por tons fosforescentes (rosas, azuis, amarelos). As alegorias primaram pela grandiosidade e pelo acabamento, e nas fantasias o primor nos detalhes e as referências de época tiveram ainda mais êxito.

Como dupla, Marcus e Tarcísio têm apenas dois carnavais. Antes de 2020, cada qual atuava individualmente, e retomar esses voos solos talvez possa ser uma boa ideia para o desenvolvimento da linguagem e das características destes dois artistas interessantes, que em vários momentos do desfile apresentaram suas assinaturas pessoais, sem, no entanto, deixar de atender a uma sequência equilibrada pela atuação em conjunto.
Trabalhando em parceria, Marcus+Tarcisio formam um time que/ tem atuado apoiado na pesquisa de conteúdo (textual e iconográfico) e investigando o legado de um repertório clássico de construção de alegorias e figurinos do carnaval. Têm uma atuação menos desestruturante e reordenadora como a da dupla Bora e Haddad, por exemplo, e caminham na estrada do diálogo com uma tradição, o que não é de forma alguma um problema. Excelentes artistas, como Alex de Souza, trilham a mesma opção, e a mesma diversidade anunciada como virtude nos debates sobre enredo deve ser respeitada quanto a pauta é o estilo ou as escolhas plásticas dos artistas. O importante é haver vertigem.

Foi possível identificar, no desfile da Viradouro, os momentos do cortejo mais ligados às características lúdicas e oníricas de Marcus, com o uso de tons cítricos e do humor. Assinatura presente nos segmentos em que foram lembradas fantasias e alegorias de 1919 que tomaram as ruas do Rio fazendo piada com o estrago causado pela Gripe: o riso como remédio. Naquele início de século XX, houve gente fantasiada de canja, inventou-se a caipirinha acrescentando cachaça a um xarope medicinal e lembrou-se do “Chá da Meia-Noite”, beberagem que, reza a lenda, acelerava a partida dos doentes terminais em uma Santa Casa sem leitos suficientes para atender à população.
No caso de Tarcísio, o uso de materiais como palha, pipoca e barba de bode, os tons terrosos, os buquês de rosas brancas e a pintura “pitangada” de branco sobre telha, lembrando as esculturas em barro do Vale do Jequitinhonha, também se fizeram presentes, sobretudo no importante momento do desfile em que a cultura negra não foi sonegada. Em 1919, os blocos afro da Cidade Nova enfrentaram a proibição pública e saíram às ruas sem autorização, na segunda-feira de carnaval.
Nas alas dos desfiles da Viradouro, havia referências à Pequena África e aos Oito Batutas, e ao orixá Obaluaiê, em imensa e belíssima escultura, que dominava o quinto carro, com cabaças e pipocas. Nesta alegoria, um estandarte do histórico rancho Ameno Resedá em uma das sacadas. Precioso e mais uma demonstração do cuidado com que o desfile foi construído.
No entanto, mesmo as jornadas que primam pela entrega dos artistas podem conter momentos menos felizes. No caso do desfile da escola de Niterói, houve um nítido divórcio entre o samba de enredo e o desfile. Com exceção do setor final, que trazia uma ala com placas formando um envelope que se abria e revelava uma carta, nada na Avenida se relacionou com a letra do samba, composto sob a forma de uma mensagem enviada do Pierrô à Colombina – esta, encarnando cada um dos foliões de 1919 e de agora.
Talvez essa discrepância tivesse ficado menos evidente se a tal ala viesse no começo da escola, e fosse mesmo uma comissão de frente, e não uma espécie de “comissão de fim”. Em termos discursivos, colaboraria para uma conexão imediata do desfile de hoje com o de 1919, como propõe o enredo, e haveria de pronto uma menção à narrativa epistolar que a letra do samba enseja, além de um aquecimento das arquibancadas. Sim, é preciso dizer: o início em preto do desfile era uma proposta ousada – e sempre celebraremos a ousadia e o risco como prova de coragem, além de um desejo dos artistas de testar seus limites.
Essa escuridão, somada a uma comissão de frente um tanto enigmática e fria, acabou formando uma soma com a baixa adesão do samba. A alegoria da comissão – baseada na canção “E o mundo não se acabou “, de Assis Valente, inspirada no surto de Gripe Espanhola de 1918 e imortalizada na voz de Carmem Miranda – era bastante abstrata na sua primeira configuração, o que talvez possa ter colaborado para distanciar o público.
Ainda quanto ao desempenho do samba, coração que irriga de energia todo um desfile, é preciso enfatizar que a recepção foi morna, mesmo com todo o brilho da bateria de Mestre Ciça. Como ponto mais alto, as paradinhas nas quais eram ouvidos apenas as caixas e os pratos, remetendo a marchinhas típicas dos antigos carnavais.
Imagem do cabeçalho: Alexandre Gomes/ Revista Caju
Imagens comissão de frente: Riotur
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Por dentro do enredo da Viradouro – Texto de Daniela Name e Thales Valoura – CLIQUE AQUI.
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Escritor e jornalista. Autor dos livros "A lua na caixa d'água" (Malê, 2021), "Rua de dentro" (Record, 2020) e "Ferrugem"(Record, 2017), entre outros.
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